Cuidados Primários vs Cuidados hospitalares – para onde vamos?
Especialista em Medicina Geral e Familiar, Mestre em Evidência e Decisão em Saúde e Coordenador do Grupo de Estudos de Dor da APMGF

Cuidados Primários vs Cuidados hospitalares – para onde vamos?

As pessoas sabem aquilo que fazem; frequentemente sabem porque fazem o que fazem; mas o que ignoram é o efeito produzido por aquilo que fazem.

Michel Foucault

 

Um artigo recente da Harvard Business Review* põe a nu a realidade dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) nos EUA e deixa-nos algumas mensagens que poderão ser úteis para reabrir a discussão sobre o papel dos CSP em Portugal.

Podemos ler neste artigo que um relatório de 2021 das Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina dos EUA concluiu que os CSP são a única área médica em que uma maior oferta produz melhorias na saúde da população, vidas mais longas e maior equidade em saúde.

Esta frase embora simples tem um impacto fundamental quando se pensa no desenho de um sistema de saúde.

Mas o que nos diz mais este artigo?

Diz-nos que os esforços atuais para extrair “valor” dos CSP, concentrando-se em algoritmos de diagnóstico e métricas de qualidade, revelam um mal-entendido insanável o propósito dos cuidados primários. As tentativas de aplicação de processos e tecnologias desenhadas para cuidados hospitalares na prestação de cuidados primários têm se mostrado insuficientes para suportar o complexo trabalho das equipas de CSP. Isto porque no centro do sucesso dos CSP permanece uma relação única entre médicos e pacientes, baseada na confiança.

Por isso se ouve cada mais: eu quero “o meu médico” e não “um médico”.

Na medicina atual, os cuidados hospitalares são em ferramentas sofisticadas, para intervenções diagnósticas e terapêuticas cada vez mais complexas. Neste âmbito, o uso de checklists e a medição de processos específicos faz sentido por se poder avaliar resultados de uma forma muita mais matemática.

Quantos anos de vida vale “o meu médico” vs “um médico”?

O âmbito dos CSP é tão amplo e profundo quanto a experiência humana. As interações médico-doente, são redondas, assimétricas e altamente evolutivas no tempo. As tentativas de tornar essa interação mais “eficiente” através de tecnologia e processos sobrepõem artificialidade e podem roubar do médico a capacidade de construir um vínculo de confiança e, em última análise, influenciar um estilo de vida mais saudável.

Diz o NASEM que ouvir o paciente e desenvolver em conjunto ele um plano de cuidados eficaz é a melhor forma de atingir bons resultados em saúde. Uma verdade de La Palice?

Quero um médico que saiba de tecnologia ou uma medicina tecnológica em CSP?

Existe, ainda hoje, uma linha de pensamento que vê os CSP como mini-hospitais, mini máquinas de uma linha de montagens de procedimentos. E que vê estes procedimentos como uma forma de garantir resultados porque geram métricas semelhantes às utilizadas nos hospitais.

Talvez estejamos a medir o “sucesso” em CSP da forma errada. Antes da tecnologia vem o treino científico. Antes do treino científico vem a capacidade de construir relacionamentos de confiança médico-doente. Se se juntar os três na medida certa e se deixar o tempo necessário para o bolo poder crescer talvez tenhamos o bolo certo para fazer mais pela saúde da nossa população.

Senão, continuaremos a ignorar o efeito real produzido por aquilo que fazemos em sáude.

 

 

* The U.S. Health Care System Isn’t Built for Primary Care, Harvard Business Review (https://hbr.org/2021/09/the-u-s-health-care-system-isnt-built-for-primary-care)

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