Apelos, “porrada” e “carcanhol” (I)
Médico de família

Apelos, “porrada” e “carcanhol” (I)

A tua exaustão é a do gladiador após a luta, o teu trabalho foi caiar o canto do escritório de um funcionário.”

Kafka

A Ministra da Saúde vaticinou um ano difícil para o SNS e apelou aos profissionais para não desiludirem os portugueses que neles confiam. No atual clima de crispação, este apelo bem pode ser visto como uma tentativa de responsabilizar os profissionais pelo previsível continuar de degradação dos cuidados de saúde. A tutela, ao longo dos anos, não tem sido módica a pedir mais, sempre mais, esforço aos profissionais, ignorando o crescente estado de exaustão e pré-exaustão em que se encontram.

Compete à tutela, mais do que apelar reiteradamente a esforços suplementares que têm por limite o céu, dar mostras de se empenhar igualmente. Para já, terá perdido uma oportunidade de arregaçar as mangas e atuar na sequência dos casos de violência vindos a público recentemente. Por outro lado, insiste em manter o status quo malsão do SPMS. Aliena deste modo a confiança dos profissionais. E são os profissionais que fazem o SNS.

Violência

 

O homem violento deve ser punido; se o poupares, ele tornar-se-á pior.”

Provérbios 19,19

Detesto as vítimas quando elas respeitam os seus carrascos.”

J.P. Sartre

Em relação aos deploráveis eventos de violência será oportuno lembrar três factos que não me recordo de ver referidos. Primeiro que a grande maioria, se não a esmagadora maioria dos utentes do SNS não se revêm nessas práticas e demonstram tantas vezes uma paciência notável. Em segundo lugar, foram esquecidos os assistentes técnicos, primeira linha de contacto com a instituição, e que são talvez os mais sujeitos a maus-tratos verbais, que amiúde nem sequer lhes são destinados. Os administrativos são frequentemente confrontados com a insatisfação de utentes para com outros profissionais a quem não ousam enfrentar. Em terceiro, lugar cumpre verificar se as reclamações dos utentes têm resposta adequada.

Posto isto, vejamos o que a tutela deveria ter feito e não fez: punir. É evidente que estamos a falar de crimes públicos e, como tal, ficam sob a alçada da Justiça. Mas as entidades onde ocorreram estas agressões podiam e deviam avançar com processos cíveis e pedir indeminizações por danos patrimoniais e eventualmente morais. Vejamos: quem pagou o transporte da colega agredida em Setúbal para o hospital central onde foi tratada? E os custos com o tratamento e subsídio de doença? E os custos decorrentes da ausência no local de trabalho? Será justo sujeitar o pagador de impostos a arcar com estas despesas em vez dos agressores? E porque não instituir penalizações disciplinares como excluir os ofensores dos benefícios da gratuidade ou da comparticipação, ou sua expulsão das instituições onde cometeram as agressões?

Se a tutela tivesse enveredado por este caminho, aliás já sugerido pelo SIM, teria dado sinal sólido de estar a atuar em defesa dos profissionais e, em última análise, a pugnar pelo bom funcionamento do SNS. Não o tendo feito, perdeu uma oportunidade de motivar os profissionais que sentem na degradação da segurança e na relativa inércia dos governantes mais um desincentivo.

O clima de impunidade vigente, que não se confina à área dos cuidados de saúde – sendo públicos os casos de violência nas escolas, tribunais e mesmo contra forças de segurança – radica vagamente nas reminiscências revolucionárias da legitimidade da (supostamente) “justa ira das massas”, em sinergia com o conceito liberal do “cliente tem sempre razão”. Segundo estes pontos de vista, a responsabilidade assenta exclusivamente na tutela, isentando de culpa o cidadão agressor, mesmo quando na génese do ato violento estão motivos inequivocamente espúrios, como o que se passou nos casos de recusa de emissão de CIT.

É paradoxal esta hipócrita benevolência para com os prevaricadores já que no fundo prejudica o comum dos cidadãos, cumpridor das regras: a impunidade face ao clima de intimidação resulta na cedência aos mais ameaçadores. Os critérios de prioridade de atendimento (e mesmo da própria acessibilidade) passam a ser definidos pelo medo e não pelo principio da equidade.

Por isso, não é possível permanecer sem silêncio ao tomarmos conhecimento da sentença anedótica proferida num tribunal do Porto contra quatro desordeiros que viram recompensada a agressão a funcionários do hospital de S. João e a um agente da autoridade. Anos atrás dizia um juiz dum caso mediático que avaliava o pedido de extradição para Itália dum mafioso: “quando os juízes tiverem medo, qualquer cidadão passará a ter razões para ter medo”. Depois desta bizarra “sentença” podemos especular que o medo reina nos tribunais e no ministério público e, por consequência, que a segurança nos nossos locais de trabalho ficou ainda mais ameaçada. Péssimo desempenho da Justiça que fragiliza o próprio Estado de Direito e a desacredita perante os profissionais de saúde e utentes em geral.

Não pudendo contar com a capacidade de dissuasão do poder judicial, mais se justifica exigir da nossa tutela as tais medidas disciplinares sugeridas.

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