<i class="iconlock fa fa-lock fa-1x" aria-hidden="true" style="color:#e82d43;"></i> A linguagem dos mililitros: traduzir a farmacologia para cuidar de crianças
Enfermeiro Especialista em Enfermagem Comunitária; Autor do livro “Preparação de Terapêutica Farmacológica em Saúde Infantil e Pediátrica (LIDEL)

A linguagem dos mililitros: traduzir a farmacologia para cuidar de crianças

Na farmacologia pediátrica, cada mililitro conta – e não apenas no cálculo da dose. Tem-se também em consideração a forma como é apresentado, explicado e administrado. Para quem trabalha com crianças, não basta dominar fórmulas, normas e protocolos; é necessário traduzir a linguagem da ciência para a do cuidado. Entre seringas, colheres e frascos, existe um diálogo silencioso onde a confiança se constrói gota-a-gota.

Uma criança não pergunta pela concentração do fármaco, pelo intervalo de administração ou pela farmacocinética. Questiona se vai doer, se sabe mal ou se demora muito. Cabe aos profissionais responder de forma clara, sem perder a precisão técnica. Traduzir pode ser dizer “vai picar um bocadinho, mas acaba rápido” em vez de “é só uma injeção intramuscular” ou explicar que “é um xarope para ajudar o corpo a ficar mais forte” ao contrário de “é um antibiótico oral para combater a infeção bacteriana”.

Muitos exemplos no dia-a-dia mostram que a forma como se comunica influencia diretamente o resultado da terapêutica. Uma simples mudança na abordagem – transformar o som de um conta-gotas numa brincadeira, convidar a criança a segurar o “copinho mágico” ou deixá-la escolher um autocolante no fim – não altera a dose nem o princípio ativo, mas pode transformar por completo a experiência. Crianças mais tranquilas colaboram melhor, evitam movimentos bruscos e mantêm o momento sob controlo, o que aumenta a segurança de todo o processo.

Há também o cuidado com o ambiente. O espaço físico, o tom de voz e até a expressão facial fazem parte desta tradução silenciosa. Uma sala acolhedora, luz suave e utensílios organizados transmitem serenidade e reduzem o medo. O som metálico de um tabuleiro ou o abrir de um frasco podem ser suavizados com palavras simples que preparem a criança para o que vai acontecer. São detalhes quase invisíveis, mas que deixam marcas positivas.

Esta tradução da farmacologia implica ainda envolver ativamente pais e cuidadores. Para as crianças, recorre-se a metáforas: “este líquido é um super-herói que vai ajudar o teu corpo a lutar contra os vilões” ou “estas gotinhas são como um escudo protetor”. Para os adultos, explica-se com rigor o mecanismo de ação, os possíveis efeitos adversos e a importância de cumprir horários. São duas linguagens paralelas com o mesmo objetivo: garantir segurança e eficácia no tratamento.

Não se trata apenas de administrar um fármaco, mas de criar um ambiente onde todos se sintam parte do mesmo propósito. Quando pais e cuidadores compreendem o sentido de cada passo, tornam-se aliados no cumprimento da terapêutica. E quando a criança sente que participa – seja escolhendo o local onde quer sentar-se, o copo para o xarope ou a música que ouve durante o procedimento – a experiência deixa de ser um momento de imposição e passa a ser de colaboração e confiança.

Num mundo onde a pressa pode afastar a escuta e a empatia, é fundamental lembrar que cada mililitro transporta mais do que fármaco: leva significado, confiança e esperança. Saber traduzir esses mililitros é transformar um ato clínico em cuidado integral. No final, quando o frasco está vazio e o tratamento concluído, o que fica na memória da criança não é a fórmula química, mas a forma como foi cuidada – o som tranquilo da voz, a mão firme que segurou a sua e a certeza de que, mesmo nos momentos difíceis, houve alguém que soube unir ciência e humanidade.

 

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