“A humanização dos cuidados tem de ser assumida como prioridade, com a excelência técnico-científica em paralelo com a excelência do humanismo”
A criação do Serviço de Humanização da ULS de Coimbra marca um compromisso em colocar a pessoa no centro dos cuidados de saúde. Dirigido pela cardiologista Sílvia Monteiro, o projeto aposta em três pilares: humanizar os cuidados ao doente, cuidar de quem cuida e transformar a cultura organizacional, promovendo uma saúde mais inclusiva e digna.

Como surgiu a ideia de criar um Serviço de Humanização na ULS de Coimbra?
A ULS Coimbra vive um momento de profunda transformação, que tem como prioridade estratégica a construção de um sistema de saúde mais humano e inclusivo, promovendo cuidados de saúde integrados, de elevada qualidade e centrados na pessoa.
A criação do Serviço de Humanização representa um compromisso claro com a promoção de uma saúde verdadeiramente humanizada, através do reforço de uma cultura institucional assente na escuta ativa, respeito pelos direitos do doente e humanismo no cuidar.
Apesar de toda a complexidade que envolve a gestão das instituições de saúde, é importante não esquecer, que somos acima de tudo uma comunidade de pessoas – as
pessoas que cuidam e as pessoas que nos são confiadas a cuidar. Somos todos pessoas, todos frágeis e vulneráveis, seguramente o maior desafio, mas também a maior potencialidade do nosso sistema.
Desta forma, a humanização dos cuidados de saúde tem de ser assumida como uma prioridade, com a excelência técnico-científica a caminhar em paralelo com a excelência do humanismo no cuidar. O Serviço de Humanização assume três pilares de intervenção: humanizar o doente e os seus cuidados, cuidar de quem cuida e transformar a cultura organizacional.
Que lacunas ou necessidades identificaram nos cuidados de saúde que levaram a esta iniciativa?
Vivemos um tempo muito desafiante no SNS, relacionado com as alterações demográficas, sociais e políticas de saúde, que condicionam excesso de doentes e escassez de profissionais nas instituições de saúde, contribuindo para a desumanização progressiva dos cuidados prestados.
As dificuldades na área da saúde são bem conhecidas e sentidas por todos. Mas este não é um tempo para desanimar ou desistir. Este é o tempo de sonhar, focar no essencial e construir uma ULS de pessoas que cuidam de pessoas, capaz de dignificar cada ser humano e salvaguardar o bem comum.
Porque o doente é muito mais do que a sua doença, para cuidar com humanismo é preciso um olhar integral sobre a pessoa, que para além da sua corporalidade, é dotada de sentimentos, emoções, necessidades sociais e espirituais.
Neste sentido, pretendemos identificar, promover e divulgar Boas Práticas em Humanização, investir na sensibilização e formação dos profissionais de saúde, garantir o bem-estar e a valorização dos nossos profissionais, inspirar uma cultura de respeito, diálogo, espírito de colaboração e estabelecimento de verdadeiras relações humanas.
“O doente é muito mais do que a sua doença, para cuidar com humanismo é preciso um olhar integral sobre a pessoa”
Quais são os objetivos imediatos e a médio/longo prazo deste serviço?
A curto prazo, o foco será colocado na definição de estratégias de promoção do bem-estar do doente, cultivando a abordagem integral da pessoa, com projetos dedicados e diferenciados em cada Serviço Clínico. Neste contexto, identificámos como áreas prioritárias de intervenção o serviço de urgência, o percurso do doente oncológico, os cuidados de fim de vida intra-hospitalares e comunitários, a certificação em Humanização das Unidades de Cuidados Intensivos e a literacia em saúde.
Temos também a ambição de ampliar o espetro de atuação dos nossos voluntários, com integração de um maior número de elementos, incluindo o voluntariado jovem, de forma a promover o encontro de gerações. Em parceria com o Núcleo Universitário de Voluntariado de Estudantes de Medicina da Universidade de Coimbra, temos o privilégio de receber os nossos futuros médicos num programa de voluntariado contínuo e em regime de cadeira semestral opcional.
Outra área crítica de atuação diz respeito à humanização dos espaços físicos das diferentes unidades da instituição, com melhoria da qualidade das infraestruturas e equipamentos, combate ao ruído, atualização da sinalética de orientação, minimização de barreiras arquitetónicas no acesso e circulação de pessoas de mobilidade condicionada, criação de espaços de lazer e conforto para profissionais e doentes. A sustentabilidade ecológica será também uma prioridade transversal em todas as dimensões da instituição.
Sentimos que está na hora de abrir progressivamente as portas do hospital, criar um novo paradigma – Hospital de Portas Abertas, que poderá reforçar a relação de confiança com os cidadãos e normalizar a presença dos espaços de saúde no seio das comunidades. Estamos a avaliar a possibilidade de alargamento do horário de visitas, de permanência alargada de um cuidador ou familiar de referência nos internamentos, com eventual participação nos cuidados ao doente, promovendo um ambiente de proximidade e capacitação dos cuidadores, de forma a facilitar a transição de cuidados para o domicílio.
Esperamos também abrir as portas da nossa instituição às artes e humanidades, estabelecendo parcerias com instituições da nossa cidade, para trazer exposições temporárias dos nossos museus, música, teatro e poesia.
A comunicação será um elemento-chave do Serviço de Humanização, desde o reequilíbrio e otimização da relação profissional-doente, desenvolvimento do processo de escuta ativa do doente e respetiva família e envolvimento no processo de decisão do plano terapêutico, até à promoção da autonomia e capacitação dos doentes para se tornarem participantes ativos na gestão da sua saúde.
A médio/longo prazo, sonhamos uma ULS Coimbra capaz de cuidar da Vida Humana com dignidade do princípio até ao fim, desenvolver as atitudes de escuta ativa, empatia e compaixão em todos os seus profissionais, fazer renascer a esperança em cada pessoa marcada pelo sofrimento, implementar e reforçar a cultura da responsabilidade e do cuidado, em suma, capaz de servir o bem comum em harmonia com a ecologia integral.
Como vai ser “medido o sucesso” na humanização?
A avaliação regular da satisfação dos doentes ao longo do percurso de cuidados, bem como a avaliação da satisfação e bem-estar dos profissionais de saúde é uma prioridade para a ULS Coimbra.
Por outro lado, os projetos a desenvolver devem incluir indicadores de qualidade clínica, processual, da experiência do doente e respetivas famílias.
A investigação em boas práticas é uma ferramenta importante para demonstrar o impacto da humanização nos resultados em saúde. O Serviço de Humanização tem como objetivo estimular e acompanhar o desenvolvimento de estudos de iniciativa do investigador, promover a participação em congressos e a publicação científica regular, e estabelecer parcerias com organismos externos para auditoria e benchmarking.
O serviço vai cobrir todos os níveis de cuidados (hospitais, centros de saúde, consultas externas), correto? De que forma?
O Serviço de Humanização tem como área de intervenção os oito hospitais e 26 Centros de Saúde que integram a ULS Coimbra, de forma transversal em todas as suas valências, tendo em conta as particularidades e especificidades de cada unidade de saúde.
A Equipa Core constituída por 15 elementos multiprofissionais, representativos dos cuidados hospitalares e cuidados de saúde primários, tem como missão definir e acompanhar a implementação do plano de ação. Teremos elos em cada serviço, de forma a facilitar a integração transversal da humanização nos processos clínicos diários e definição de iniciativas adaptadas a cada realidade. Para projetos de maior dimensão, estamos a constituir grupos de trabalho formados por profissionais de cada área de intervenção.
A Humanização não é um conceito abstrato, na verdade, concretiza-se na prática do dia a dia, em cada gesto de entrega, ternura e cuidado, em cada atitude de escuta, empatia e compaixão. Por isso, contamos com a colaboração de todos para cumprir esta grande missão. A Humanização faz-se com todos!
Este trabalho em humanização não vai ser apenas a nível os utentes e seus familiares, mas também dos profissionais de saúde. De que forma?
Sabemos que o bem-estar e a motivação dos profissionais de saúde tem um impacto determinante na qualidade da prestação dos cuidados e na experiência da pessoa doente durante o seu percurso nos sistemas de saúde. Cuidar de quem cuida é uma prioridade do Serviço de Humanização.
A exigência deste tempo que vivemos interpela-nos a fazer uma reflexão profunda: Qual é o verdadeiro sentido da minha vida? Estará o meu trabalho alinhado com o meu propósito de vida?
Felizmente, para a maior parte dos profissionais de saúde é fácil encontrar a sua missão – Cuidar da Vida Humana, uma missão muito exigente, pois cada vida é única, irrepetível e tem uma dignidade absolutamente inquestionável.
Em estreita colaboração com o Serviço de Promoção do Bem-Estar e Diversidade, pretendemos desenvolver estratégias que permitam uma abordagem integral do bem-estar físico, emocional e social dos profissionais de saúde.
Dada a elevada complexidade do cuidado e exposição prolongada a ambientes de elevado stress emocional, a saúde mental dos nossos profissionais constitui o principal foco de preocupação. Está previsto um grande investimento em estratégias de prevenção e identificação precoce dos sintomas de burnout, ampliação da consulta de saúde mental a decorrer desde a pandemia, sob a responsabilidade dos serviços de Saúde Ocupacional, Psiquiatria e Psicologia, manutenção das aulas de mindfulness e criação de grupos de partilha de experiências, particularmente no acompanhamento do luto profissional.
O acolhimento e integração de novos profissionais está a merecer uma atenção especial da instituição, com inclusão de conteúdos relativos à humanização. Por outro lado, está a ser feito um esforço de sensibilização para a necessidade de formação profissional contínua na área da humanização dos cuidados.
Em conjunto com o Serviço de Formação e Desenvolvimento Pessoal estamos a elaborar um programa de formação, incluindo as áreas da comunicação profissional-doente, escuta ativa, empatia e compaixão, medicina narrativa, cuidados de fim de vida, gestão do stress e prevenção do burnout e novas formas de liderança.
“O bem-estar e a motivação dos profissionais de saúde tem um impacto determinante na qualidade da prestação dos cuidados e na experiência da pessoa doente”
Quais são os maiores desafios que antevê para implementar esta humanização de cuidados?
A escassez de profissionais, o excesso de trabalho e a descrença na mudança poderão ser os maiores desafios a ultrapassar. Contudo, o acolhimento da parte dos profissionais de saúde tem sido muito positivo, demonstrando disponibilidade para integrar as equipas e participar nas iniciativas. Sinto que se vive um tempo de esperança na construção de uma instituição mais humanizada e humanizadora para todos.
O que a levou a interessar-se por estes assuntos? O que a inspira a ser diretora de um Serviço de Humanização?
Enquanto médica, sinto que me foi confiada a missão de cuidar da vida humana – uma missão exigente que toca o sagrado. Acredito que este é um propósito essencial, um caminho de felicidade na minha vida – cuidar e servir a pessoa doente.
Aceitei a Direção do Serviço de Humanização com humildade e espírito de missão, com a plena noção das dificuldades, mas com uma grande esperança de poder impactar positivamente a vida dos nossos doentes, familiares e profissionais de saúde.
Chego a este lugar profundamente marcada pelo percurso de doença e morte recente do meu pai. Na verdade, cuidar do meu pai de uma forma absolutamente integral ao longo de dois anos de doença oncológica, acompanhá-lo até ao fim na nossa casa, foi a experiência mais edificante e transformadora da minha vida. Senti na primeira pessoa as dificuldades e angústias perante o sofrimento, mas pude experimentar o impacto do cuidado humanizado que me ajudou a suportar o que tinha de ser suportado, a abraçar a realidade com serenidade e confiança, a amar por inteiro todos os dias, como se fosse o último, na certeza de que a vida tem dignidade até ao fim.
O cuidado é, sem dúvida, a grande experiência humanizadora onde aprendemos o verdadeiro significado da vida e cumprimos plenamente a nossa missão. Acredito que este é o grande desafio dos nossos dias: amar e cuidar rostos concretos, colocando a pessoa no centro e agindo em favor do bem comum. Porque o segredo da vida é amar. E o segredo do amor é cuidar.
Sílvia Malheiro
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