Médico, Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos Gaia. Professor auxiliar convidado, FMUC e FMUP
A canábis na dor crónica: o estado da arte e a utilização na prática clínica
Durante vários anos tivemos discussões públicas sobre o uso da canábis para fins medicinais. Debates nas escolas e universidades, nas televisões, no parlamento, todos pareciam ter uma opinião, que se resumia a uma resposta de “sim” ou “não” à questão: “És a favor da utilização da canábis para fins medicinais?”. Esta inaudita bizarria prejudicou e prejudica ainda hoje milhões de doentes. Desde quando é que a aprovação de um medicamento é discutida pela opinião pública?
A canábis medicinal representa mais um avanço da ciência e mais uma arma terapêutica para o controlo de sintomas, onde muitas vezes precisamos de uma abordagem multimodal individualizada, adequada à realidade e contexto de cada doente.
Tal como não devemos extrapolar dados e resultados de recomendações americanas sobre o uso de opioides, atendendo a que o seu uso indevido neste país foi generalizado e explosivo durante anos, também devemos evitar comparações abusivas com a nossa realidade relativamente à canábis medicinal.
Devemos, igualmente, ser criteriosos e cuidadosos na análise da ciência relativamente aos estudos que foram efetuados e publicados até ao momento. De facto, relativamente à sua utilização em doentes com dor, temos vários estudos contraditórios, muitos dos quais de qualidade duvidosa: comparam eficácia sem garantir uma estabilidade na dosagem administrada do canabinoide, avaliam por curtos períodos de tempo, apresentam marcada heterogeneidade da amostra, não avaliam outcomes relacionados com o doente, não avaliam efeitos das restantes terapêuticas, entre outros.
Da análise que podemos efetuar até ao momento, retira-se que o efeito nos recetores CB1 e CB2 do sistema endocanabinoide está comprovado e não é idêntico entre tetrahidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD), ambos atualmente aprovados pelo INFARMED e disponíveis em Portugal. Os CB1 estão localizados no sistema nervoso periférico e central, particularmente nos centros moduladores da dor. Os CB2 estão localizados especialmente em células do sistema imune e hematológico, estando associados à regulação da resposta inflamatória. O THC é um agonista parcial de CB1 e CB2, inibe a libertação de glutamato e modula vias dopaminérgicas, estando relacionado com o controlo da dor. O CBD é um modulador dos recetores CB1 e também atua em recetores serotoninérgicos, vaniloides e outros.
“A dose faz o veneno” é uma frase atribuída a Paracelso, médico do século XVI e considerado o pai da Toxicologia. Face ao conhecimento atual, acrescentaria que, em todos os psicofármacos, a titulação também “faz o veneno”. Selecionando os ensaios clínicos publicados de melhor qualidade, as maiores evidências no uso de canábis medicinal apontam para a dor crónica, particularmente dor neuropática, cefaleias refratárias à medicação, alodínia e dor oncológica. São claros os benefícios medidos em escalas de dor e de qualidade de vida, com efeitos adversos muito pouco frequentes, desde que respeitadas algumas regras na prescrição.
Em doentes que não tenham ainda qualquer terapêutica com canábis medicinal, a dose recomendada de CBD deverá ser de 5mg 1 a 2 vezes por dia e a titulação poderá ser realizada a cada 2 a 7 dias. Contudo, esta recomendação de um painel de peritos não teve em conta as características individuais dos doentes. No Congresso Multidisciplinar da Dor 2024 insistiremos na importância desta abordagem. No caso do CBD, que é um fármaco altamente metabolizado pelo CYP450, algumas populações específicas terão que ter precauções adicionais no início e titulação desta terapêutica.
Relativamente ao THC, a dose diária recomendada a um doente anteriormente virgem de canábis medicinal seria de 2,5mg por dia, podendo ser titulado até um máximo de 40mg. CBD e THC podem ser utilizados em concomitância, com evidência na melhoria de controlo da dor e de outros sintomas, e evitando a necessidade de doses maiores e atenuando a necessidade de titulações.
Dos 22 doentes que tive até ao momento com canábis medicinal, todos com THC18 vaporizado (o único disponível em prescrição médica até esse momento), 18 foram no contexto de dor oncológica, tendo apresentado uma melhoria evidente aquando da sua introdução e benefícios adicionais no controlo de náuseas e vómitos e aumento do apetite. Estamos a preparar um artigo para publicação destes resultados.
Com alvos terapêuticos e perfis de segurança identificados, com gestão de doses e titulações declaradas e recomendadas, resta-nos iniciar o seu uso em doentes que necessitem efetivamente destes fármacos. E temos que medir os resultados desta atuação, como o fazemos em relação a todos os outros medicamentos.
Percebendo a sua relevância, é fundamental que seja comparticipada. Acredito que só assim conseguiremos utilizá-la em todos os doentes que dela necessitem.
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