ULS Coimbra. “Estamos a apostar em projetos de proximidade, querendo sair do hospital para a comunidade”

São vários os projetos de proximidade que a ULS Coimbra tem em curso para que haja uma verdadeira integração entre cuidados primários e hospitalares, segundo Almerinda Rodrigues, diretora clínica para os cuidados de saúde primários da ULS Coimbra. A responsável dá a conhecer alguns e também fala sobre as mais-valias de se ser uma ULS universitária.

ULS Coimbra. “Estamos a apostar em projetos de proximidade, querendo sair do hospital para a comunidade”

Que balanço faz deste primeiro ano e meio de modelo ULS, em Coimbra?

Devo dizer que aceitei o convite para estas funções como mais um desafio na minha carreira profissional, mas também porque percebi que o Sr. Presidente do Conselho de Administração (CA) tinha um grande conhecimento da realidade dos cuidados de saúde primários (CSP), o que iria, obviamente, facilitar a articulação e a integração.

Efetivamente, isso tem acontecido, nomeadamente na forma como fui acolhida no CA. No final de 2023 já tinham sido nomeados os restantes elementos do CA e eu fui a última, no início de janeiro de 2024. Houve sempre um diálogo para delinear estratégias comuns. À época, antes da ULS, estava à frente do Conselho Clínico e Saúde do ACeS Baixo Mondego – também estava a substituir o Diretor Executivo do ACeS – e acabei por participar no desenho da ULS. Tem sido uma caminhada, com algumas dificuldades, mas que vamos tentando ultrapassar, em conjunto.

Quais são essas dificuldades?

Devem-se, essencialmente, à área geográfica muito grande da ULS, com realidades muito diferentes nas várias unidades funcionais. A escassez de recursos humanos, que já se fazia sentir antes do modelo ULS, também é um desafio, sobretudo no que diz respeito a médicos e secretários clínicos, assim como na Logística. Mas, a longo deste tempo, temos estado a desenvolver vários projetos, estando alguns já no terreno para colmatar estes problemas.

Considera que quando se decidiu avançar com a expansão das ULS, a nível nacional, não se acautelou essa escassez de recursos humanos?

No caso da Logística estava prevista a resolução do problema, com a extinção das administrações regionais de saúde (ARS), mas na prática, não foi possível recrutar os profissionais de que necessitávamos. Foi algo negativo, de facto, porque estávamos a contar com o apoio desses recursos, que acabaram por não vir.

“Talvez haja a possibilidade de se articular concelhos próximos, para que se crie uma USF com polos ou haver maior flexibilidade nos horários, revendo os incentivos”

A falta de médicos de família poderá ter a ver com a nova geração que não se sente tão atraída pelas atuais condições de trabalho, que dificultam um maior equilíbrio entre vida familiar e profissional?

Sim, temos vindo a sentir isso. Existe uma nova forma de encarar, inclusive, a própria profissão de médico. Os colegas mais jovens têm outra perspetiva e isso tem de se ter em conta, porque as coisas evoluem. Às vezes, tenho alguma dificuldade em entender essa visão, já que sou de outra geração. Mas esse equilíbrio contribui, de facto, para se aceitar, ou não, a ida para determinada unidade. Muitos não aceitam  unidades que fiquem além de 20 minutos de caminho. Antigamente, isto não se verificava. Hoje, também há mais ofertas e os colegas têm alternativas. Não se trata de uma crítica; é uma constatação. Não sei muito bem como poderemos dar resposta a esta necessidade das novas gerações, apesar de, em Coimbra, já estarmos a pensar em algumas possíveis soluções…

Nas USF não existe uma grande abertura para que toda a equipa possa optar por trabalhar a meio tempo. Isso deveria mudar face à nova geração?

Sim, é preciso rever todo o modelo USF. É um modelo que já deu provas de ser o ideal, no que diz respeito à prestação de cuidados de saúde de qualidade – e mesmo de organização -, mas temos que encontrar novas soluções, sobretudo para as localidades mais longínquas, que estão mais desprotegidas.

Por exemplo, um concelho, com cerca 2200 habitantes sem médico de família, não tem possibilidade, segundo a lei atual, de criar uma USF. Não há sequer utentes para mais do que um médico, apesar de, na prática, serem muitos para um único clínico. Talvez haja a possibilidade de se articular concelhos próximos, para que se crie uma USF com polos ou haver maior flexibilidade nos horários, revendo os incentivos. Existem muitos locais que começam a ficar desprotegidos em termos de cobertura por médico de família. As primeiras USF surgiram, na sua maioria, em ambiente de cidade, mas este é o momento de rever o modelo e adequá-lo aos locais mais distantes e às suas necessidades.

“A passagem por locais rurais, mais distantes, e com características diferentes das grandes cidades, é uma vantagem. Esse tipo de experiências ensina-nos muito, enriquece-nos”

Antigamente, havia o Serviço Médico à Periferia (SMP) e vários médicos, depois dessa experiência, queriam ficar em localidades mais remotas. Deveria existir alguma experiência/programa idêntico como forma de poder, quiçá, atrair e fixar médicos nessas regiões?

A passagem por locais rurais, mais distantes, e com características diferentes das grandes cidades, é uma vantagem. Esse tipo de experiências ensina-nos muito, enriquece-nos. Estamos a apostar, na ULS Coimbra, em projetos que envolvem os alunos da Faculdade de Medicina, as câmaras municipais e as comissões de internato médico (CIM). O objetivo é que os jovens fiquem a conhecer esses locais, desde a faculdade, e também durante o Internato. Seria importante, na minha perspetiva, que os jovens recém-especialistas pudessem estar nessas localidades por um ou dois anos, desde que, obviamente, tivessem condições dignas, que lhes dessem satisfação profissional.

É essencial que não haja receio em se deslocarem para zonas mais rurais. Há vantagens, pois determinadas situações apenas existem ali. Além disso, há outros motivos de atratibilidade como a tranquilidade e a qualidade de vida, os gastos menores em comparação com o meio urbano… As próprias câmaras municipais têm projetos a pensar no médico e na sua família, como apoio à habitação e à educação dos filhos. Valia a pena que os colegas olhassem para esta possibilidade, que lhes pode trazer enriquecimento pessoal e profissional.

Tendo em conta a realidade do Centro, receia que as pessoas possam ficar sem médico de família, na maioria das regiões, nos próximos anos?

Acredito que vamos conseguir dar a volta ao problema. Tudo o que estamos a fazer vai permitir que se consiga atrair os médicos jovens para a nossa ULS. Tenho tido contacto de colegas jovens, de outras ULS, que querem vir para a ULS Coimbra. Estou certa de que conseguiremos dar médico de família também a quem vive mais distante da cidade, nomeadamente com a criação de novas USF – algumas quase no terreno, como em Tábua e Alvaiázere, com equipas muito dedicadas e com ficheiros a descoberto.

“Tendo em conta a área geográfica da ULS, decidimos criar as denominadas Comunidades de Saúde (CS) – são 6,  cada uma agregando concelhos com caraterísticas sociodemográficas semelhantes”

Que projetos são esses?

Estamos, sobretudo, a apostar em projetos de proximidade, querendo sair do hospital para a comunidade. Tendo em conta a área geográfica da ULS, decidimos criar as denominadas Comunidades de Saúde (CS) – são 6,  cada uma agregando concelhos com caraterísticas sociodemográficas semelhantes. Estas CS vão permitir a instalação, em cada comunidade, de MCDT (raios-X, ECG e análises clínicas), evitando a deslocação dos doentes a Coimbra e criando apoio à decisão clínica dos médicos de família. O objetivo é implementar uma governação clínica de proximidade, tendo em conta as realidades locais. Inevitavelmente, tudo isto será em articulação com a Direção Clínica para os CSP da ULS Coimbra.

Temos promovido reuniões periódicas com os diversos municípios e estamos a desenvolver várias soluções em cada CS como a criação de unidades de feridas complexas, unidade de apoio de Oftalmologia com realização de rastreios de retinopatia e glaucoma e teleconsultoria em diversas áreas. Combatemos desta forma o isolamento do médico de família e promovemos o conforto dos nossos doentes, evitando referenciações desnecessárias para o Hospital. A realização de teleconsultas com marcação direta, por parte do médico de família, na agenda dos médicos das diversas especialidades hospitalares é, hoje em dia, uma realidade.

Também pensam ter clínicas de resposta a doenças crónicas…

Exato, nomeadamente na área da diabetes. Um doente que acaba por descompensar ou que tem algum problema relacionado com a diabetes, em vez de ir às urgências, vai à clínica de diabetes, que conta com uma equipa multidisciplinar (endocrinologista, médico de família, enfermeiro, nutricionista, psicólogo e podologista). A valência de Podologia é essencial para quem tem pé diabético, já que esta é das condições clínicas que mais levam à urgência. Este projeto surge no âmbito do Processo Clínico Integrado (PCI), que foi desenhado por uma equipa multiprofissional, envolvendo CSP e hospital. Na prática, os profissionais é que vão ter com o doente e não o inverso. Foi também criada a Unidade de Monitorização Remota, para se saber se o doente tem tido problemas e se cumpre a medicação; sempre em articulação direta com a clínica e o médico de família. Tem sido um ganho muito grande.

 

Acima de tudo, apostam na proximidade e na integração…

Sim, a criação de equipas multiprofissionais tem permitido o conhecimento da realidade de cada nível de cuidados, com centralidade no doente e nas suas necessidades.

Quantos doentes com diabetes estão a ser acompanhados por esta clínica?

Mais de mil, mas vamos alargar a mais comunidades de saúde.

“A ULS universitária é uma forma de se poder integrar ensaios clínicos e trabalhos de investigação numa maior escala, envolvendo-se os internos e especialistas de Medicina Geral e Familiar”

Esses projetos são somente para a diabetes?

Não, também temos noutras áreas como doenças respiratórias, insuficiência cardíaca e depressão. Atualmente, estamos ainda a avançar com outras duas, mais relacionadas com a prevenção da obesidade infantil e o tabagismo. O objetivo é ter uma aposta clara na prevenção, mas também na intervenção coordenada e definida em vários níveis de cuidados. Exemplo: cessação tabágica – intervenção breve, que já é realizada por todos os médicos de família -, cessação tabágica mais intensiva – uma consulta por Centro de Saúde – e consulta hospitalar em estreita colaboração com a dos CSP, para casos bem definidos e para intervenção a nível dos doentes internados no Hospital. Por fim, uma intervenção generalizada na comunidade com informações corretas e esclarecedoras sobre tabagismo, bem como ação das equipas de saúde nas escolas.

Acresce, ainda, a criação e a ampliação das equipas comunitárias de saúde mental – já existem algumas -, sediadas muito próximas ou num dos centros de saúde da comunidade, dando apoio aos restantes. Desta forma, é possível que se entre em contacto mais facilmente com o psiquiatra ou com o psicólogo, sobretudo na doença mental grave, mas também em outras patologias do foro mental, com dotação de psicólogos nas equipas comunitárias.

Estamos também a trabalhar no alargamento a mais quatro unidades de um projeto-piloto de feridas complexas, existente na comunidade de saúde de Cantanhede. Estamos a dotar, inclusive, as unidades de equipamento para tal tratamento. Houve, ainda, uma aposta muito grande na resposta à doença aguda, principalmente, no âmbito do Plano de Contingência de Inverno, em que reuníamos, semanalmente, com os coordenadores das unidades funcionais. Foi criado um dash board para perceber a realidade da procura nos CSP e planeámos, com os coordenadores, o tipo de resposta adequada ao nível de procura.  Foram ainda criados quatro Centros de Atendimento Clínico em zonas mais carenciadas. Desta forma, e com adesão ao Projeto “Ligue Antes, Salve Vidas”, conseguimos reduzir em 20% a ida às urgências hospitalares.

A ULS Coimbra é universitária. Da experiência que tem tido, faz sentido que haja este tipo de ULS?

Sim! Faz todo o sentido, porque é uma vantagem, ao dar a possibilidade de se maximizar todo o potencial a nível académico, com a integração com a Faculdade de Medicina, com a Escola de Enfermagem, e outras. Destaco, também a criação do Hospital -Escola de Reabilitação no Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro – Rovisco Pais. A ULS universitária é uma forma de se poder integrar ensaios clínicos e trabalhos de investigação numa maior escala, envolvendo-se os internos e especialistas de Medicina Geral e Familiar – incluído Bolsas, também nos CSP. Existe o Centro de Investigação Aplicada de Coimbra que está aberto a todos os profissionais da ULS, logo ser-se ULS universitária é uma mais-valia.

E poderão ser também um atrativo para os jovens médicos de família, que querem apostar na investigação?

Sim, sem dúvida! Não havia apoios, anteriormente, para os internos de MGF, por exemplo para partilharem os seus trabalhos de investigação em congressos no estrangeiro ou para realizarem um trabalho em larga escala, em colaboração com colegas hospitalares. A existência de formação e o acesso a revistas internacionais – com oportunidade de publicação de trabalhos – era algo que não era possível, anteriormente.

Tendo em conta os vários projetos, pode dizer-se que tem sido um ano e meio de ULS com sucesso?

Sim, ainda há caminho a fazer, coisas para afinar, mas tem corrido bem. Acrescento que neste trabalho também temos estado a apostar na valorização das unidades de cuidados na comunidade (UCC) e das equipas de cuidados continuados integrados (ECCI), além de se criar camas de resposta na comunidade, em articulação com o Serviço Social.

 

Maria João Garcia

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