22 Jan, 2024

Sozinhos, doentes com demência desaparecem e outros saem sem acompanhamento do hospital

Em 2023, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) recebeu 994 queixas relacionadas com “acompanhamento durante a prestação de cuidados” a doentes com demência e no ano anterior recebeu 1.018 denúncias.

Os casos de cuidadores impedidos de acompanhar doentes com demência nos serviços de saúde multiplicam-se, havendo histórias de idosos que desaparecem do sistema ou que saem sozinhos do hospital sendo encontrados, por vizinhos, “a dormir no chão do prédio”.

Há 10 anos que a lei garante a todos os utentes o direito a estarem acompanhados nos serviços de saúde, mas este é um diploma que é muitas vezes ignorado.

Em 2023, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) recebeu 994 queixas relacionadas com “acompanhamento durante a prestação de cuidados” e no ano anterior recebeu 1.018 denúncias.

Nem todas dizem respeito a doentes com demência, mas “acontecem com alguma frequência e são absolutamente inaceitáveis”, disse à Lusa Catarina Alvarez, da Alzheimer Portugal – Associação Portuguesa de Familiares e Amigos dos Doentes de Alzheimer.

Entre as reclamações feitas à ERS está a dos familiares de Jorge (nome fictício), impedidos de acompanhar um idoso de 84 anos às urgências do Hospital Garcia de Orta, em Almada.

Numa madrugada de outubro do ano passado, a mulher ficou à espera na rua até ser aconselhada a ir “para casa descansada”, porque os exames iriam “demorar mais de seis horas” e assim que “o paciente tivesse alta contactá-la-iam”, lê-se na queixa escrita pela sobrinha.

No entanto, poucas horas depois, por volta das sete da manhã, foi alertada pelos vizinhos que o marido “estava no corredor do prédio a dormir no chão”.

No caso de Jorge, houve também uma falha nos procedimentos de alta dos doentes. No ano passado, a ERS recebeu 116 queixas relacionadas com pacientes que tiveram alta “sem contacto a acompanhante” ou em que houve “falhas de vigilância e de controlo de saídas”, explicou o gabinete de comunicação da ERS.

Mais uma vez, nem todas estas queixas dizem respeito a doentes com demência. Nem todas significam que a pessoa desapareceu, sublinha o gabinete de imprensa da ERS.

Mas, ao entrarem sozinhos nas urgências, “o risco de desaparecimento é bastante elevado assim como o de a pessoa não ser encontrada em tempo útil”, alertou Catarina Alvarez. Felizmente, acrescentou, “na maior parte das vezes, o desfecho é positivo, porque a pessoa é encontrada por um familiar ou por alguém que a procura”.

Foi o caso de Maria (nome fictício), que “desapareceu do sistema” do Garcia de Orta durante várias horas, deixando a família em pânico.

“Incapacitada a nível de audição, mobilidade e fala”, Maria também deu entrada nas urgências sozinha, porque a família foi impedida de entrar e aconselhada a ir para casa.

Horas mais tarde, “ninguém sabia da minha mãe”, relata a filha na queixa enviada à ERS, na qual revela que uma funcionária lhe disse que a mãe “não estava no sistema”: A médica tinha-lhe dado “alta por abandono”, por não comparecer à consulta de urgência.

“Como é que querem que uma pessoa que não anda, não ouve, não fala e não tem capacidade de raciocínio consiga perceber e sequer movimentar-se para ir à consulta de urgência?”, questiona a filha, criticando também os serviços por não avisarem a família de que a mãe tinha tido alta.

  “Se não fôssemos nós a ligar para saber dela, ainda hoje lá estava perdida naquele hospital”, acusa a filha.

No mês seguinte, tiveram de voltar ao hospital, tendo sido novamente ignorado o direito a ter um acompanhante, apesar de a filha alertar para o facto de a senhora não conseguir explicar o motivo da ida às urgências.

A presença do um acompanhante é também “uma vantagem para a equipa clínica, porque às vezes a pessoa tem dificuldades em descrever a sua situação clínica e, portanto, ter um acompanhante é fundamental e necessário”, salientou o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, Xavier Barreto.

Exemplo disso foi também a recente ida às urgências de Teresa (nome fictício). A senhora com Alzheimer caiu e bateu com a cabeça, tendo perdido a consciência durante alguns minutos. À entrada do hospital, a sobrinha foi impedida de a acompanhar, apesar de ter alertado para a situação clínica da tia e da sua incapacidade de transmitir informações.

Resultado: A carta de alta referia que a doente não tinha queixas ou dores, contou à Lusa a filha, sublinhando que “é normal acontecer sempre que vai sem acompanhante, por não se recordar do motivo que a fez ser transportada às urgências”.

Este caso nunca chegou ao conhecimento das autoridades e a família pretende manter o anonimato, até por ser muito provável que tenham de voltar ao mesmo hospital.

Em setembro, quando Teresa deu entrada nas urgências de uma unidade hospitalar de Coimbra, a sobrinha, que é cuidadora, foi impedida de entrar. A família ficou mais de 48 horas sem informações, apesar dos muitos contactos.

A filha de Teresa diz que só quando a família ameaçou fazer queixa à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) é que a senhora apareceu: “Foi entregue nua, suja, descalça, coberta com uma bata e sentada numa cadeira de rodas”, recordou à Lusa.

Nesse dia, a mãe trazia ao colo, num saco de plástico, a sua roupa suja, misturada com o cartão de cidadão. Nesses dois dias, Teresa “não tomou a medicação, não recebeu cuidados de higiene, nem foi levada a uma casa de banho”, contou.

Mas há casos que, mesmo sob ameaça, continuam por resolver, como a de Avelina Ferreira, que desapareceu a 12 de dezembro de 2023, depois de ter entrado sozinha nas urgências do Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, uma vez que o marido foi impedido de a acompanhar. Esteve sete horas à espera do lado de fora das urgências, até descobrir que Avelina tinha desaparecido.

O presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, Xavier Barreto, defende que nestes casos é importante investigar o que se passou.

De um direito com uma década que já motivou milhares de queixas, a ERS avançou com dois processos de contraordenação: Um caso ocorreu em 2017 no Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, e outro em 2018 no Centro Hospitalar Universitário do Algarve. Ambas as unidades de saúde foram multadas com uma coima de 2.500 euros.

 

LUSA

Notícias relacionadas

Investigadores do Porto identificam proteína que pode ter implicações na demência

Print Friendly, PDF & Email
ler mais
Print Friendly, PDF & Email
ler mais