
IFE em MGF, USF Famílias – ULS Entre Douro e Vouga; Membro do Conselho Nacional do Médico Interno
Ser-se médico de família: os desafios do Internato e a esperança no futuro
Ser médico de família é escolher uma medicina de proximidade, onde o vínculo com o utente é tão importante quanto o diagnóstico. É acompanhar o doente ao longo da vida, criando um laço clínico e humano que torna esta especialidade única no sistema de saúde. Mas esta relação médico-doente não nasce por acaso. A sua construção começa durante o internato de Medicina Geral e Familiar (MGF), uma fase de crescimento profissional intenso, marcada por um percurso desafiante com obstáculos que, embora identificados, persistem.
A cada concurso aumenta o número de vagas de MGF por preencher, não só relativas à escolha da especialidade, mas também no Serviço Nacional de Saúde (SNS) após o internato. Levanta-se a questão: o que repele a escolha de iniciar e continuar esta especialidade no SNS?
A exigência curricular é, por si só, um desafio. Além da elevada carga assistencial durante o horário laboral, o percurso formativo está estruturado com base numa grelha curricular exigente. A rigidez deste modelo tende a limitar a diversidade de experiências e a sua aplicação varia significativamente entre júris de avaliação, evidenciando a necessidade de maior padronização. Nesse contexto, muitas vezes, o estudo autónomo e a formação específica são secundarizados em prol de extensas recolhas de dados e elaboração de múltiplos trabalhos científicos.
Esta sobrecarga burocrática, agravada por sistemas informáticos inadequados, desvia tempo e energia do que realmente importa: aprender para melhor cuidar. Segundo um estudo do Conselho Nacional do Médico Interno, realizado em 2023, mais de metade dos médicos internos apresenta risco de burnout e 25% têm sintomas graves, refletindo a dificuldade em conciliar o internato com a vida pessoal.
A isto soma-se outro importante obstáculo, frequentemente invisível: a incerteza do pós-internato. Após quatro anos de formação específica num determinado local, é necessária a candidatura a um novo concurso para ter a possibilidade de integrar o SNS. Este reinício forçado desafia todos os que construíram uma vida profissional, e frequentemente pessoal, na região onde realizaram o internato. Muitos desejam permanecer no SNS e praticar a especialidade para a qual se formaram, com estabilidade e qualidade. Contudo, acabam por tropeçar na rigidez de um sistema que impõe recomeços sem garantias.
Apesar de tudo, existem progressos e motivos para acreditar que o sistema pode mudar: as oito horas semanais de estudo estão, em muitos casos, a ser cumpridas; as coordenações de internato têm dinamizado formações em áreas como comunicação, governação clínica ou investigação, acrescentando valor à experiência formativa do médico interno; e a capacitação dos orientadores de formação tem sido reforçada por meio de iniciativas formativas específicas, que visam aprimorar as suas competências pedagógicas e o acompanhamento dos médicos internos ao longo do seu percurso.
Ser médico de família é um privilégio – é a possibilidade de ser gestor de saúde, promotor de bem-estar e, muitas vezes, o primeiro ponto de contacto do utente com o SNS. Mas, para que este nunca se esgote, é urgente garantir que os médicos internos de hoje possam ser os especialistas de amanhã. Com formação de qualidade, reconhecimento profissional e condições humanas de trabalho no SNS, o futuro da MGF pode ser tão promissor quanto necessário.
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