17 Mai, 2023

Psicadélicos. “O risco de a pessoa ficar dependente da substância usada no tratamento é muito baixo”

Inês Carmo Figueiredo, Mafalda Corvacho e Pedro Mota são psiquiatras e cofundadores da SPACE - Sociedade Portuguesa de Aplicação Clínica de Enteógenos. São também os coordenadores do livro “Psicadélicos em Saúde Mental” (LIDEL), onde abordam o uso de substâncias psicadélicas nalgumas doenças, como a depressão resistente.

Legenda: Mafalda Corvacho, Inês Carmo Figueiredo e Pedro Mota

Atualmente, quais são os psicadélicos que são utilizados na prática clínica?

Inês Carmo Figueiredo (ICF) – É predominantemente utilizada a ketamina, que é uma substância com diferentes propriedades e utilizações. É geralmente utilizada, em doses superiores, como um anestésico, porém, em doses inferiores, ditas subanestésicas, tem propriedades antidepressivas e ansiolíticas, com evidência científica sólida coletada ao longo das últimas décadas. É, pois, considerada uma substância psicadélica atípica e tem sido usada no contexto de psicoterapia psicadélica desde a década de 1970. A Terapia Assistida por Ketamina tem vindo a ser disponibilizada em Portugal desde 2021. Um outro psicadélico, também ele considerado um psicadélico atípico, e que será provavelmente aquele que mais brevemente será aprovado para uso terapêutico é o MDMA. Entre outros psicadélicos que têm recebido bastante atenção mediática, destaca-se a psilocibina (substância ativa presente nos “cogumelos mágicos”), mas que, para já, apenas são utilizados em contextos de investigação clínica.

 

Em que tipo de patologias são utilizadas?

Mafalda Corvacho (MC) – Reúnem maior evidência (maior número de estudos em que demonstram eficácia e segurança) para a perturbação depressiva, incluindo nos casos de depressão resistente (em que pelo menos dois tratamentos falharam em produzir a remissão dos sintomas). Também têm sido investigados e mostram eficácia noutras condições, como as ligadas à ansiedade, ou ao trauma, como a perturbação de stress pós-traumático. Também têm sido investigadas no âmbito do tratamento de perturbações do uso de substâncias (incluindo álcool e tabaco), com resultados preliminares promissores.

“… é radicalmente diferente usar estas substâncias em contextos recreativos comparativamente aos contextos clínicos e de investigação”

Quais são os pontos fortes e fracos destas substâncias?

Pedro Mota (PM) – Primeiro é importante referir que os riscos e benefícios não podem ser extrapolados para além do seu uso terapêutico, ou seja, é radicalmente diferente usar estas substâncias em contextos recreativos comparativamente aos contextos clínicos e de investigação. “Pontos fortes” podemos considerar o potencial de indução de efeitos terapêuticos significativos, mesmo em pessoas que não responderam a outros tratamentos, ou facto de não terem de ser administradas diariamente, como a maioria dos tratamentos psiquiátricos, nomeadamente outros antidepressivos. Os efeitos a nível da neuroplasticidade também parecem ser fundamentais para o processo psicoterapêutico em curso. Outros aspetos positivos são o seu perfil de segurança, quando usadas em contexto terapêutico, nomeadamente no que diz respeito ao perfil de efeitos secundários. Também aparentam ter baixo risco aditivo.

Contudo, estas substâncias não serão, certamente, adequadas a todas as pessoas, e cada proposta requer uma avaliação médica rigorosa. Neste sentido, também a investigação clínica atual ainda vai apresentando diferentes limitações metodológicas e de avaliação de eficácia e segurança, carecendo também de heterogeneidade de populações de participantes. É algo que os futuros ensaios clínicos terão em conta para que seja eventualmente possível expandir este modelo terapêutico. O próprio modelo de aplicação terapêutica, apesar das inúmeras vantagens que representa no que toca à criação de um ambiente de suporte e segurança, também acarreta alguns desafios, como seja a longa duração de ação da maioria das substâncias. Exceção feita no caso da ketamina que tem uma duração da experiência mais curta, mas que, ao contrário da psilocibina ou do MDMA, tem de ser administrada por via endovenosa ou intramuscular.

 

Existe o risco de o doente se tornar dependente destas substâncias e de as procurar de forma ilegal na Internet?

MC – A evidência científica tem vindo a reforçar que o risco de a pessoa ficar dependente da substância usada no tratamento é muito baixo. A avaliação médica que é realizada antes de ser proposto este tipo de tratamento aos doentes também avalia aspetos da sua história prévia ou características da sua personalidade que possam conferir um risco potencial de adição superior. Porém, é importante voltar a frisar a ideia fundamental de que será sempre diferente e imprevisível se alguém simplesmente decidir usar ketamina ou MDMA fora de um contexto terapêutico, sendo que existe risco de dependência descrito para ambas as substâncias em contextos recreativos. Já psicadélicos como a psilocibina apresentam um risco aditivo muito reduzido, dos mais baixos entre todas as substâncias psicoativas, sejam lícitas (como o álcool, tabaco ou benzodiazepinas) ou ilícitas.

“Este livro reúne a evidência científica atual sobre a terapia psicadélica, integrando-a também numa contextualização histórica e nos domínios da Ética e do Direito”

Além destas substâncias, que outro tipo de medidas farmacológicas e não farmacológicas devem ser tomadas?

PM – Nos contextos de investigação foi popularizada a expressão set e setting, a qual diz respeito, respetivamente, às condições interna e externa em que uma experiência com substâncias psicoativas se dá. Set representa um termo que se refere à disposição e às expectativas que a pessoa traz para a experiência, assim como às suas características fisiológicas, psicológicas e sociais, enquanto que o setting se refere às circunstâncias externas em que a experiência ocorre, nas quais estão incluídos o ambiente físico, mas também político, cultural e jurídico, estando unanimemente reconhecido pela comunidade científica que estas são características particularmente relevantes no caso das substâncias psicadélicas.

Na prática clínica e nos ensaios clínicos têm-se prestado particular atenção ao set, ao ser fornecida uma extensa preparação psicológica dos doentes (muitas vezes durando várias horas e envolvendo uma série de visitas repetidas antes e depois das sessões em que se utilizam as substâncias psicadélicas), assim como ao setting, havendo manipulação do ambiente terapêutico, por exemplo, através de uma iluminação mais ténue do espaço, listas de reprodução de música cuidadosamente selecionadas ou até uma decoração esteticamente agradável, de forma a fomentar uma sensação de conforto e de segurança. Além disso, os pacientes têm habitualmente dois profissionais de saúde mental compassivos (geralmente médicos psiquiatras e psicólogos) permanentemente disponíveis, os quais previamente preparam cuidadosamente os pacientes para as suas experiências, os apoiam durante toda a sessão e os ajudam, posteriormente, a integrar o conteúdo e significado destas experiências. Esse suporte intensivo é, de resto, incomum no contexto dos serviços convencionais de saúde mental, porém tem sido a norma nos tratamentos com recurso a substâncias psicadélicas.

Que mensagem gostaria de deixar a quem adquirir o livro?

ICF – Este livro reúne a evidência científica atual sobre a terapia psicadélica, integrando-a também numa contextualização histórica e nos domínios da Ética e do Direito, algo que, do nosso conhecimento, é verdadeiramente ímpar na literatura portuguesa e mesmo internacional. Contamos que este livro sirva de ponto de partida para que clínicos e investigadores tenham acesso a um portfólio de informação em língua portuguesa que lhes permita navegar da melhor maneira a teoria e os conceitos que pautam esta inovadora forma de tratamento.  Será, certamente, uma ferramenta que poderá alimentar futuros debates entre clínicos e entre instituições. Também poderá constituir um recurso útil para o público em geral, dotando-o de informação credível e cientificamente estruturada, tornando-o mais consciente não só do próprio modelo de aplicação e do seu potencial terapêutico, mas também das limitações e riscos que estes comportam.

Texto: Maria João Garcia
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