18 Abr, 2018

Portugal sem VHC

Os novos antivirais de ação direta, que têm uma taxa de cura próxima dos 100%, já eliminaram o vírus em quase 10 mil doentes. Contudo, a terapêutica ainda não chega a muitos infetados. No simpósio Portugal sem VHC discutiu-se a possibilidade de serem eliminadas etapas e simplificar processos no acesso aos diferentes regimes terapêuticos, de modo a conseguir um maior adesão dos doentes. O objetivo é erradicar a doença enquanto problema de saúde pública até 2030.

A evolução do tratamento da infeção pelo vírus da Hepatite C (VHC) em Portugal é positiva, com os mais recentes antivirais de ação direta a garantirem uma taxa de cura próxima dos 100%. Pese a eficácia, a inovação terapêutica ainda não chega a todas as pessoas infetadas. Para os especialistas há muito por fazer para garantir que todos, mesmo os que vivem à margem da sociedade, tenham acesso aos cuidados de saúde que se impõem para eliminar a doença enquanto problema de saúde pública, um dos objetivos propostos pela OMS, a cumprir até 2030.

Para analisar possíveis estratégias de eliminação e simplificação terapêutica na abordagem da infeção por VHC a biofarmacêutica AbbVie organizou um simpósio, integrado no Congresso anual da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado (APEF), que este ano teve lugar na Figueira da Foz.

Armando de Carvalho, a quem coube moderar o painel de debate, começou por salientar os números do sucesso dos últimos anos “que informam que foram iniciados 15 mil tratamentos com antivirais de ação direta dos quais quase 10 mil concluídos tendo sido alcançada uma resposta virológica sustentada, desde o início da compilação dos dados, de 96,6%”. Porém, realçou, são dados que indicam que 305 pessoas infetadas não foram curadas, pelo que “continuarão a constituir uma preocupação para os serviços de saúde” e a suscitar a necessidade de se testarem novas combinações.
Um aspeto destacado pelo docente da Universidade de Coimbra relativamente aos dados apresentados foi o de que “mais de metade dos 15 mil doentes que iniciaram tratamento apresentava cirrose hepática e uma fibrose de grau 3”. No futuro, antevê, “iremos tratar doentes com cada vez menos prevalência de cirrose, o que é um cenário muito positivo”, apontou.

Prof. Dr. Armando de Carvalho, Especialista em Medicina Interna: “A partir de agora tratamos todos, independentemente do estádio da doença. O estar infetado é o critério de tratamento. Tratamos todos, ponto final!”

Uma situação que, lembrou, veio derrogar as recomendações de priorização em função da gravidade da situação específica de cada caso. “A partir de agora tratamos todos, independentemente do estádio da doença. O estar infetado é o critério de tratamento. Tratamos todos, ponto final!”, sublinhou o especialista em Medicina Interna do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra.

Não obstante as boas notícias, a verdade é que a comunidade médica enfrenta hoje um problema para o qual ainda não foi encontrada uma solução consensual: os grupos populacionais que não estão rastreados e onde a incidência da infeção por VHC é particularmente elevada – principalmente, entre os toxicodependentes.
“Interessa-nos muito especialmente saber qual é a prevalência nos doentes com consumo de drogas. Esse será no futuro o grupo mais importante, relativamente ao controlo da epidemia”, disse o médico, acrescentando que “não vale a pena falar em rastreio universal porque o rastreio nunca é universal – é apenas naqueles que se deixam rastrear”.

Se Maomé não vai à montanha…

Com o objetivo de superar as dificuldades em identificar quem vive infectado, mas não está a ser acompanhado nem a realizar nenhuma terapêutica, uma equipa médica, onde se incluiu o gastroenterologista Mário Jorge Silva, especialista em Gastrenterologia do Centro Hospitalar de Lisboa Central, Hospital dos Capuchos, saiu para as ruas de Lisboa numa tentativa de se aproximar dos indivíduos que não aderem aos cuidados de saúde convencionais (como as consultas em hospitais ou centros de saúde). Fê-lo, associando-se a uma equipa responsável pela implementação de um Programa de Substituição Opiácea de Baixo Limiar de Exigência (PSOBLE), a operar na zona de Xabregas, em Lisboa, implementado pela associação Ares do Pinhal. Todos os processos associados ao projeto foram realizados in loco, em espaço junto à carrinha de distribuição de metadona: caracterização de risco, colheita de sangue para serologia a VHC e para carga viral e nas pessoas com infeção ativa, determinação do genótipo. Finalmente, o estadiamento da doença, com recurso a fibroscan portátil. “Com esta metodologia evitámos os desvios que naturalmente ocorrem nas idas aos centros de saúde ou às consultas hospitalares. Conseguimos estudar 825 utentes dos 1191 utentes inscritos naquele período no PSOBLE”, referiu o médico Mário Jorge Silva.

Pese o esforço de aproximação e mesmo dispondo de uma equipa médica ao lado, menos de 80% da população que beneficiava do programa de metadona aceitou participar no estudo, que decorreu ente junho de 2015 e maio de 2016 e que conseguiu rastrear 825 pessoas, na sua grande maioria homens, com uma média de idades de 44 anos. “Um grupo complicado”, reconheceu Mário Jorge Silva. Pessoas que que dificilmente aderem aos cuidados convencionais de saúde e, por isso mesmo, estão pouco representadas nos estudos populacionais baseados em centros de saúde ou outros, que não desenhados para captar esta população. Do inquérito efetuado foi possível apurar que 71% não tinha emprego, 79% não tinha completado o ensino básico e 11% eram mesmo indivíduos sem-abrigo.

O Dr. Mário Jorge Silva, Gastroenterologista do Hospital dos Capuchos, desenvolveu um estudo na zona de Xabregas, em Lisboa, junto dos indivíduos que não aderem aos cuidados de saúde convencionais

Foi possível detetar a infecção pelo VHC em 307 pessoas, sendo que em apenas 264 foi possível caracterizar melhor a infeção. No entanto, a estimativa é de que a doença atinja pelo menos o dobro daquele número, no universo de 1191 utentes abrangidos pelo PSOBLE. De entre os mais de 800 participantes no estudo, registou-se uma seroprevalência de 67,6%dos indivíduos, dos quais 68,4% apresentavam infeção ativa, sendo o GT1 o genótipo predominante. Dos 264 utentes que acederam submeter-se a elastografia hepática transitória com recurso a FibroScan®, a maioria (49%) enquadrava-se no estadiamento F0 e F1. De salientar a determinação de 30% dos utentes em fases 3 e 4.

Concluída a primeira fase de prospeção no terreno, a equipa retornaria um ano depois, com o objetivo de perceber que tipo de iniciativas tinham os utentes tomado para tratar a doença. “Os números são algo desoladores”, confessa Mário Jorge Silva. Apenas 38% dos 307 infetados foi a uma consulta de especialidade e só 18% diz ter sido tratado.

O diretor de Medicina Interna dos Hospitais da Universidade de Coimbra, Armando de Carvalho, já tinha deixado clara a sua preferência por estudos como este, mais baseados na realidade – como este – em detrimento daqueles que são construídos a partir da opinião de peritos, no que se refere à caracterização da epidemia. No entanto, ressalvou que, embora os números não sejam muitas vezes os mais corretos, o importante é perceber que ainda há muitos doentes por diagnosticar.

As negociações entre o Estado e as companhias farmacêuticas permitiram um acesso ao tratamento das pessoas infetadas pelo VHC, num investimento que no futuro terá um importante impacto económico. “Erradicar o vírus não é apenas tratar a doença hepática – uma infeção destas é muito mais do que uma infeção do fígado, é mais sistémica. Também há um impacto económico: resolver este problema é também ajudar a resolver problemas dos índices do trabalho. E feitas as contas, daqui a uns anos será possível concluir que o dinheiro investido no acesso dos tratamentos a quem deles necessitava foi bem aplicado”, garante Armando de carvalho.

O Dr. Mário Jorge Silva, Gastroenterologista do Hospital dos Capuchos, desenvolveu um estudo na zona de Xabregas, em Lisboa, junto dos indivíduos que não aderem aos cuidados de saúde convencionais.

Derrubar barreiras no acesso aos cuidados

Mário Jorge Silva apresentou na Figueira da Foz algumas propostas para combater a baixa adesão das populações com as mesmas características daquela que foi objeto do já referido estudo (utilizadores de drogas), aos cuidados de saúde específicos para rastreamento e tratamento da infeção por VHC. “É necessário aproximar os doentes dos cuidados de saúde convencionais, derrubando as barreiras hoje existentes ao tratamento da Hepatite C”, defendeu.

Entre as propostas apresentadas, destaca-se a “consulta friendly”; uma consulta em que são eliminadas algumas etapas do processo hoje em vigor, como a rede referenciação, a burocracia da marcação de consulta, o tempo de espera e as dificuldades de deslocação. Os doentes, defendeu, deveriam poder ser referenciados diretamente pelas equipas de tratamento dos Programas de Substituição Opiácea de Baixo Limiar de Exigência (PSOBLE), garantindo-se um tempo de espera reduzido entre a marcação e a efetivação da consulta e o mínimo de burocracia. Ainda assim, diz “não é suficiente para garantir a adesão de todos”, pelo que há que estudar novas abordagens que permitam alcançar esse objetivo.

“Algumas condições estão bem identificadas”, apontou o médico gastroenterologista. Desde logo, meios de diagnóstico e estadiamento fiáveis e inócuos, associados a uma terapêutica eficaz, segura e de curta duração. Há, também, que garantir o tratamento a todos os doentes que aderem à consulta. Finalmente, defendeu “são necessárias estratégias inovadoras, estruturadas, adaptadas às condições particulares de subpopulações especiais, para diagnosticar e tratar a restante população infetada”.

“Não é suficiente tentar aproximar os doentes dos cuidados de saúde convencionais. Há doentes para os quais estas medidas não vão ser suficientes e é nestes que temos que pensar, se de facto quisermos erradicar a Hepatite C enquanto problema de saúde pública”, concluiu.

Simplificar a terapêutica para melhorar os resultados

A Ana Cláudia Miranda, especialista em Infeciologia do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, onde exerce no serviço de infeciologia do Hospital de Egas Moniz, coube a missão de abordar a simplificação terapêutica, como meio de aumentar a adesão e melhorar os resultados, num contexto onde abundam medicamentos e associações destes altamente eficazes, alguns deles com ação pangenotípica.

A especialista iniciou a sua apresentação enumerando as vantagens do tratamento em fases precoces da infeção. Desde logo, referiu, o impacto positivo na redução da transmissão. Não menos relevante, a prevenção da progressão da doença hepática, bem como da morbimortalidade associada à panóplia de manifestações extra-hepáticas, com impacto muito significativo na melhoria da qualidade de vida.

Em seguida, a especialista destacou as prioridades na escolha do regime terapêutico com antivirais de ação direta (AAD). No topo da pirâmide surge, naturalmente, a taxa de resposta ao tratamento propiciado (supressão viral), que tendo em conta as alternativas disponíveis deve ser superior a 95%. Não menos importante, a segurança dos fármacos adotados e a tolerabilidade, algo facilmente alcançado, afirmou, tendo em conta a multiplicidade de regimes terapêuticos hoje disponíveis, que também garantem outra das prioridades nas escolhas, que é a da pangenotipicidade associada a uma elevada barreira contra a superveniência de resistências; à curta duração dos tratamentos; baixo nível de interações medicamentosas e uma carga de tratamento reduzida, com regimes posológicos bastante confortáveis para os doentes.

Simpósio Abbvie: Portugal sem VHC

Pesem as boas notícias em sede de inovação terapêutica, Ana Cláudia Miranda sublinha que as estratégias desenhadas com o objetivo de eliminar a infeção pelo VHC enquanto problema de saúde pública passam sempre, em primeira instância, pela prevenção, que permite a redução do risco, o controlo da infeção e, não menos importante, em locais de baixos recursos, a segurança dos procedimentos, assegurando o controlo da infeção. A par com a prevenção, a sensibilização e o fomento de literacia que permita um melhor conhecimento da doença e suas formas de transmissão por parte do público, é outra das vertentes essenciais de qualquer estratégia, que potencia o combate ao estigma que ainda hoje se associa à doença e a inclusão de estratégias eficazes em sede de políticas de saúde que estejam em concordância com as políticas de educação.
Não menos importante, prosseguiu a especialista, é necessário estabelecer estratégias de rastreio eficazes, promover a ligação e em especial a retenção nos cuidados de saúde e finalmente o tratamento universal, tão precoce quanto possível.

Da euforia da cura à era pangenotípica e da simplificação terapêutica

Ana Cláudia Miranda recordou os incríveis cinco anos que mediaram o surgimento dos primeiros antivirais de ação direta e a atualidade, marcada por uma otimização dos esquemas terapêuticos, alguns deles de curta duração, de apenas 8 semanas, associada a uma simplificação da gestão terapêutica. Mas é possível fazer mais em sede de otimização do tratamento, prosseguiu a especialista. “Um dos fármacos que nos possibilita essa abordagem pangenotípica é o “G/P” que combina a ação de dois AAD: o Glecaprevir, um inibidor da protéase, e o Pibrentasvir, um inibidor da NS5A. Além da eficácia conhecida e do perfil de tolerabilidade esta terapêutica apresenta também uma confortável barreira genética comparativamente com os inibidores de segunda geração, quer da protéase, quer da NS5A, o que pode ter um impacto relevante em regimes de resgate terapêutico e falências prévias a fármacos anteriormente utilizados”, referiu. E acrescentou: “Tal assegura-nos eficácia, com evidência científica cumulativa, numa larga população de doentes, sob vários cenários: cirróticos e não cirróticos, doentes experimentados e em contexto de transplante hepático, coinfetados ou com comorbilidades severas, como a insuficiência renal. Quando analisada em termos de eficácia em doentes de genótipo 1 a genótipo 6 (GT1-6), naïf, sem cirrose, obtemos taxas de resposta virológica sustentadas muito confortáveis, a rondar os 100%, às 8 semanas. A que acresce a supressão do uso da Ribavirina, o que nos tranquiliza no que respeita à gestão e simplificação da terapêutica”, sublinhou Ana Cláudia Miranda.

A Ana Cláudia Miranda, infeciologista do Hospital de Egas Moniz, coube a missão de abordar a simplificação terapêutica, como meio de aumentar a adesão e melhorar os resultados.

O desafio da simplificação do rastreio e estadiamento foi também abordado pela especialista nomeadamente quanto à necessidade de testes de confirmação, a genotipagem, a avaliação do estadio de fibrose e os marcadores. “Com este avanço científico abrem-se as portas à era da simplificação”, referiu. E acrescentou: “Dois anos depois de se ter acesso à primeira geração de AADs, hoje vivemos a era pangenotípica: acesso a uma terapêutica de curta duração, de apenas oito semanas, simples, pois reduz em larga medida a obrigatoriedade de realização de testes e, por fim, segura, pois a necessidade de monitorização do doente e das complicações associadas reduziu em grande medida.”

Na Figueira da Foz, a infeciologista recordou os resultados de vários estudos que constroem evidência científica suportada na experiência com mais de 2250 doentes, em que se incluem os ensaios SURVEYOR, MAGELLAN, ENDURANCE E EXPEDITION. Nestes ensaios, a eficácia virológica às oito semanas em doentes GT1-6 não cirróticos foi de 99%. As características basais como a idade, coinfecção por VIH, entre outras, não influenciaram os resultados, que estiveram sempre entre os 98 e os 100% de supressão virológica, a 8 semanas, em doentes a fazer “G/P”, e sempre, também, acrescentou, sem adição de ribavirina, precisou Ana Cláudia Miranda.

Prestes a concluir a sua apresentação, a especialista voltou a referir a era da simplificação e reforçou as principais características do novo regime: “Toma única diária, sem ribavirina, de curta duração, de apenas oito semanas para doentes não cirróticos e de doze semanas para doentes com cirrose compensada.”

 

 

 

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