“O humanismo é intrínseco aos Cuidados Paliativos, está na sua génese”
Ferraz Gonçalves é o homenageado do Congresso Multidisciplinar da Dor. Tendo contribuído para o surgimento e avanço dos Cuidados Paliativos em Portugal, em entrevista, defende a criação da especialidade de Medicina Paliativa e como é essencial cuidar dos doentes, porque a cura nem sempre pode ser o objetivo final.

Começou por se especializar em Medicina Interna, seguindo-se a Oncologia. Como surgiu o interesse pelos Cuidados Paliativos (CP)?
Quando já estava no IPO Porto, a Liga Portuguesa Contra o Cancro estava a construir uma Unidade de Cuidados Continuados e convidou-me para ser o diretor médico do projeto. Na prática, o que se pretendia era apostar em CP, mas não se optou por essa designação por se considerar que era um termo chocante. Aceitei, mas com a condição de fazer formação fora do país, porque não havia nada em Portugal. Foi assim que fui estagiar em diferentes centros europeus.
Da sua experiência fora do país, o que mais o chamou a atenção?
Lá fora, aprendi os princípios basilares dos CP e os seus métodos de implementação. Mas, sobretudo, vi que, mantendo os princípios fundamentais, os CP se podem fazer em circunstâncias diversas adaptadas às oportunidades e recursos existentes em cada lugar.
Que desafios enfrentou na implementação dos CP em Portugal?
Os primeiros doentes eram todos terminais, porque prevalecia a ideia de que os CP seriam apenas para essas situações. Trabalhava no IPO Porto e, inevitavelmente, referenciavam apenas doentes oncológicos em fase terminal. Os CP não são somente para estes casos clínicos, como se pensava em Portugal e além-fronteiras. Passaram muitos anos até que se começasse a interiorizar o que são CP. Era uma área nova e não foi fácil que se percebesse as suas mais-valias.
Também fundou a Associação Nacional de Cuidados Paliativos – atualmente, Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. Como foi essa experiência?
Começámos a trabalhar em 1994 no IPO Porto e, no ano seguinte, avançámos com a associação. Era integrada apenas pelos profissionais da unidade, porque não havia muito mais no país. Durante algum tempo, [esta entidade] foi uma espécie de extensão da unidade do IPO Porto. Realizávamos um congresso anual e dávamos formação. O nosso objetivo era, essencialmente, divulgar os CP e contribuir para que mais profissionais se pudessem dedicar a esta área da saúde.
“Durante os tratamentos, os doentes manifestam diversos problemas físicos e psicológicos, que podem ser minimizados pelos Cuidados Paliativos”
Que avaliação faz, atualmente, dos CP em Portugal?
Os CP evoluíram muito nos últimos anos, sobretudo no número de equipas. Contudo, ainda são insuficientes, é preciso maior aposta nesta área. A população está cada vez mais envelhecida, o que contribui, por sua vez, para mais casos de doença crónica e incurável, que exigem acompanhamento em CP – e desde a fase inicial. Por exemplo, os CP podem ser importantes logo no início dos tratamentos de quimioterapia. No entanto, nem todos os doentes têm acesso aos CP desde os primeiros momentos, porque, infelizmente, faltam recursos humanos. A escassez de profissionais de saúde que se podem dedicar aos CP também contribui para que ainda haja vários casos encaminhados para CP apenas na fase mais terminal da patologia. Os CP devem ser complementares aos diferentes tratamentos. Por exemplo, a Sociedade Americana de Oncologia Clínica recomenda a integração dos CP na Oncologia…
Na sua opinião, também faz todo o sentido?
Sim, sem dúvida! Durante os tratamentos, os doentes manifestam diversos problemas físicos e psicológicos, que podem ser minimizados pelos CP.
Relativamente aos recursos, a escassez deve-se a desinteresse na área?
Há falta de recursos em várias especialidades… O facto de a Medicina Paliativa não ser uma especialidade no nosso país, também poderá contribuir para esse problema. É uma competência, mas não especialidade, o que dificulta, nomeadamente, a admissão de pessoas nos serviços. Nem sequer se pode abrir concursos para Medicina Paliativa… Quando fui diretor de Serviço no IPO Porto, tive alguma dificuldade em contratar médicos para esta área e só o conseguia através de concursos para diferentes especialidades.
Deve caminhar-se, portanto, para a especialidade…
Sim, seria muito importante. Esta visão não é consensual, mas, pessoalmente, sou a favor da especialidade.
“Penso que todos os médicos devem ter conhecimentos de Cuidados Paliativos, inclusive nos CSP”
No IPO Porto começou por coordenar uma unidade, mas posteriormente a mesma passou a ser um serviço. Esta mudança fez a diferença?
Alterou-se a designação… Inicialmente, denominava-se Unidade de Cuidados Continuados, posteriormente transitou para Unidade de CP e para Serviço de CP. No entanto, independentemente da designação a atividade foi essencialmente a mesma.
Atualmente, fala-se muito das assimetrias regionais, já que nem todos os doentes têm o mesmo acesso a CP. Seria importante existir, em todas as regiões, uma consulta de CP nos cuidados de saúde primários (CSP)?
Sim. Aliás, já temos as Equipas Comunitárias de Suporte em Cuidados Paliativos (ECSCP) e Equipas de Cuidados Continuados Integrados (ECCI) e, com as unidades locais de saúde, estas mesmas já estão interligadas com os hospitais. Seria uma mais-valia, sem dúvida, porque os CP não se restringem a doentes oncológicos.
O Serviço Nacional de Saúde está em crise, com equipas desfalcadas. De que forma se consegue manter o equilíbrio entre sobrecarga de trabalho e humanismo nos CP?
O humanismo é intrínseco aos CP, está na sua génese. Com poucos recursos é mais difícil, mas isso sente-se mais em não se dar resposta a todos os que necessitam de CP, do que à falta de humanismo. Repare que este problema não é somente português, também está a afetar outros países, onde faltam recursos… Penso que todos os médicos devem ter conhecimentos de CP, inclusive nos CSP, para que nos possamos dedicar a quem realmente precisa de cuidados mais diferenciados e se evitem falhas na resposta.
“A nossa formação tem por base a ideia de cura ou de prolongamento da vida e, se tal não se verifica, é visto como um fracasso. Mas não tem de o ser”
Na sua opinião, os avanços na Medicina, com novas terapêuticas, está a contribuir para que as pessoas sejam encaminhadas para CP numa fase mais tardia do que seria desejável?
Sim, isso pode acontecer. Atrasa ou até impede a referenciação. É necessário dar formação aos profissionais de saúde e alertar para estas situações; todavia, a melhor forma é integrar os CP numa fase inicial do tratamento, porque, como comprovam determinados estudos, os doentes têm mais qualidade de vida, são menos submetidos a tratamentos agressivos e alguns estudos mostram mesmo que podem ter sobrevivências mais longas.
Ao longo destes anos, o que mais aprendeu nos CP, quer em termos profissionais quer pessoais?
Foi, essencialmente, a consciência de que a vida é muito precária. A vida pode mudar de repente, mesmo que se seja muito jovem. Como médico, mudei a perspetiva de que a cura já não é o objetivo em todos os casos. A nossa formação tem por base a ideia de cura ou de prolongamento da vida e, se tal não se verifica, é visto como um fracasso. Mas não tem de o ser. Mesmo nas doenças incuráveis, é possível ter sucesso, se se puder dar melhor qualidade de vida aos doentes.
Maria João Garcia
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