Entrevista. “É preciso apostar mais em consultas de cefaleias, face ao impacto desta doença”

Raquel Gil-Gouveia, neurologista e presidente da Sociedade Portuguesa de Cefaleias (SPC), defende mais recursos humanos para que os neurologistas possam ter mais tempo para as consultas de cefaleias. A especialista lembra que a enxaqueca é a primeira causa de incapacidade abaixo dos 50 anos.

Qual a prevalência das cefaleias?

Depende do tipo de cefaleias. A mais comum é a cefaleia de tensão – sem doença associada – e afeta entre 50 a 60% da população portuguesa, segundo dados referentes ao ano anterior. Em vida, 90 a 95% das pessoas sofrem alguma vez ou mais desta dor. Cansaço, febre, dor mal dormida são as causas mais comuns. A mais impactante é a enxaqueca e chega aos 15% na maioria dos países. Embora não seja tão frequente como a cefaleia de tensão, esta dor está associada à perda de anos de vida com qualidade e, atualmente, é a segunda causa mundial de incapacidade ou mesmo a primeira abaixo dos 50 anos. Infelizmente, a população ainda não aceita muito bem a enxaqueca como um problema de saúde, considera-se que é mais uma desculpa, que é uma dor idêntica à da cefaleia de tensão. Comparativamente há uns anos, estamos muito melhor, mas ainda há quem não possa partilhar com os familiares que tem enxaqueca. Sentem-se incompreendidas. Esse estigma contribui para o isolamento social e para a depressão e ansiedade. Entre 2 a 3% das pessoas com enxaqueca têm mais de 15 dias de dor por mês, ou seja, vivem mais tempo com dor.

“O ideal é pedir um registo à pessoas das crises de enxaqueca: duração, dose, etc.”

Sendo o médico de família o primeiro contacto, o que podem fazer perante estes casos de enxaqueca, já que nem todos têm de ser referenciados para consultas da especialidade?

Os médicos de família têm perfeita capacidade de fazer o diagnóstico e de gerir esta doença. Os casos complexos são uma minoria. É essencial, sobretudo, escutar o doente, porque, mesmo a medicação, deve ser muito personalizada. Obviamente, nem sempre é fácil por causa da sobrecarga de trabalho e por terem, em regra, 15 minutos para ver o doente. O ideal é pedir um registo à pessoas das crises de enxaqueca: duração, dose, etc.

 

Nos casos mais complexos, que exigem consulta hospitalar, quais são os tratamentos?

Na SPC disponibilizamos três documentos que podem ajudar os colegas quer da Medicina Geral e Familiar como de outras especialidades. Nas consultas de Neurologia e nas consultas específicas de cefaleias procura-se ver o doente como um todo e perceber inclusive que comorbilidades podem contribuir para as crises de enxaqueca. No hospital, obviamente, temos acesso a fármacos injetáveis e outros que exigem o apoio de especialistas nesta área.

” O problema é a escassez de recursos humanos, porque apenas um ou dois neurologistas se dedicam a estas consultas e num tempo reduzido do seu horário”

Existe um número suficiente de consultas de cefaleias?

A SPC fez recentemente um inquérito, que não é representativo de todos os centros – nem todos responderam -, mas permitiu-nos ter noção de que há um número suficiente de consultas quer nos hospitais centrais como periféricos. Alentejo e Algarve são as que têm menos resposta. O problema é a escassez de recursos humanos, porque apenas um ou dois neurologistas se dedicam a estas consultas e num tempo reduzido do seu horário. É preciso apostar mais em consultas de cefaleias, face ao impacto desta doença.

 

Relativamente à atividade da SPC, o que podemos esperar nos próximos tempos?

A SPC é uma sociedade científica, que aposta na informação e formação de profissionais de saúde. Vamos ter nos dias 12 e 13 de maio o congresso anual, assim como outras iniciativas que vão surgindo. Investimos também em parcerias com outras sociedades como a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, a Associação Portuguesa para o Estudo da Dor e a Associação Portuguesa de Medicina do Trabalho. Também temos estado próximos com a associação de doentes Migra Portugal quer na sensibilização e formação da população. No mês passado reunimo-nos inclusive na Comissão Parlamentar de Saúde para sensibilizar os políticos para o impacto das cefaleias. Durante a audiência, foram apresentados dados relevantes sobre a prevalência, incapacidade e custo destas patologias, assim como sobre as dificuldades de acesso a cuidados de saúde e a tratamento. Foram efetuadas propostas concretas para mitigar o impacto dessas patologias no país, em particular a criação de um programa nacional para apoio clínico aos doentes com cefaleias, com o objetivo de facilitar o acesso ao diagnóstico e ao tratamento adequado, assim como o envolvimento das empresas e da Medicina do Trabalho na gestão dos doentes.

SO

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Texto: Maria João Garcia
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