“Consultores em Geriatria nos cuidados primários e unidades geriátricas nos hospitais são medidas fundamentais”
José Gomes Ermida é o homenageado da terceira edição do Congresso Multidisciplinar da Dor. Em causa está o seu trabalho no desenvolvimento da Geriatria em Portugal, quer no Serviço de Medicina dos então Hospitais Universitários de Coimbra quer como formador e voz defensora da criação da especialidade de Geriatria.

Vai ser homenageado pelo trabalho desenvolvido na Geriatria. Quando começou a interessar-se pela área?
É uma história um pouco longa…Em 1978, começou-se a falar de Geriatria em Portugal, muito graças ao Dr. José Reis Júnior, de Lisboa. Foi um pioneiro nesta área e responsável pela reorganização da Sociedade Portuguesa de Geriatria e Gerontologia. Naquela época, com a sua ajuda – era nosso decano -, eu e mais uns colegas procurámos dar formação e sensibilizar os colegas de diferentes especialidades, deslocando-nos a várias regiões do país. O objetivo era falar sobre as particularidades dos idosos, que não são apenas adultos mais velhos. Esta ideia ainda se mantém, embora muito menos, mas não faz qualquer sentido, pois, se assim fosse, também não haveria Pediatria. Muitas doenças pediátricas também são próprias do adulto…
Desde então nunca mais me deixei de envolver com a Geriatria, tendo participado na criação de umas jornadas em Coimbra, assim como na formação do primeiro Núcleo de Estudos Geriátricos do Serviço de Medicina I dos HUC. Este último projeto era coordenado pela Prof.ª Helena Saldanha, a quem instiguei este gosto e interesse pela Geriatria. Posteriormente, com o apoio do Prof. Manuel Teixeira Veríssimo também abrimos a Consulta de Geriatria nos HUC.
O que contribuiu para que não desistisse desta competência, já que ainda hoje não é aceite por todas as especialidades?
Foi mais uma questão pessoal… O meu pai, que sempre fora um homem saudável, acabou por ter um final de vida complicado. Percebi, nessa altura, de forma particular, como os idosos estavam a ser maltratados no sistema de saúde. A formação geriátrica permite-nos prestar cuidados adequados às necessidades dos mais velhos, porque eles têm determinadas especificidades. O idoso não tem patologias diferentes do adulto, mas é um complexo biopsicossocial muito diferente. Os problemas sociais são os que têm maior impacto na saúde do velho e o médico precisa de formação para não se limitar a tratar e a curar, mas também a cuidar.
“Infelizmente, ao fim de 40 anos, ainda não temos uma especialidade de Geriatria em Portugal…”
Em 1978, como é que os colegas médicos encaravam o surgimento desta área?
Não se notava um grande entusiamo, porque ainda não havia uma perceção muito concreta do que é o idoso como pessoa e como doente. Por essa razão, avançou-se com o ensino da Geriatria no curso de Medicina de Coimbra e com formações a nível nacional, nomeadamente junto dos então clínicos gerais. Ao longo destas últimas décadas, os médicos já começaram a entender que, de facto, o idoso não é um adulto mais velho.
Considera que a Geriatria deveria ser uma especialidade ou basta ser uma competência?
Infelizmente, ao fim de 40 anos, ainda não temos uma especialidade de Geriatria em Portugal… Apesar de existir em quase todos os países da Europa, – e não só – Portugal continua a ter apenas uma competência da Ordem dos Médicos (OM). A criação da competência foi muito importante, obviamente, mas falta a especialidade. Não faz sentido que ainda não exista, tendo em conta que somos o quarto país do mundo mais envelhecido e que se preveja que daqui a 20 ou 30 anos possamos vir a ser o segundo mais envelhecido a nível mundial.
“Em Espanha, a Geriatria é uma realidade desde os anos 1950. Na década seguinte, o mote era: “Nem mais um hospital sem uma Unidade Geriátrica”.”
O interesse que já se nota, hoje em dia, pela Geriatria não será também devido à necessidade de dar resposta aos muitos doentes idosos polimedicados e com multipatologia?
Sem dúvida! Uma vez, um ilustre ex-bastonário da OM, disse, num congresso, que a Geriatria jamais seria especialidade enquanto ele estivesse à frente da OM. Inevitavelmente, reagi…Não fiquei calado. Repare, o idoso é aquele que é mais ‘agredido’ quando dá entrada na urgência, porque tem multipatologia e multimorbilidade. Passa por imensos especialistas e ninguém sabe bem o que fazer… Deste modo, é importante a existência de uma especialidade que o trate como um todo. Em Espanha, a Geriatria é uma realidade desde os anos 1950. Na década seguinte, o mote era: “Nem mais um hospital sem uma Unidade Geriátrica”. Costumo dizer que o idoso não é maltratado, mas também não é bem tratado. Para o ser tem que ter o acompanhamento de especialistas que conheçam as suas particularidades.
Antes da pandemia surgiram alguns projetos nesta competência, mas muitos acabaram por ter um fim. Defende a criação da especialidade, mas não terá de haver, primeiramente, unidades onde se possam aplicar os conhecimentos?
A Dr.ª Maria Antónia Santos, que faleceu muito nova, foi a primeira a criar uma verdadeira consulta geriátrica no Hospital Garcia de Orta. As instituições não têm grande interesse em Geriatria, mas a verdade é que para se cuidar bem dos idosos, todos os hospitais deveriam ter uma unidade geriátrica. Repare-se que, nas urgências, os idosos ficam muitas vezes abandonados por não se saber como priorizar a multipatologia. Mesmo ao nível dos cuidados de saúde primários deveria haver consultores. Consultores em Geriatria nos cuidados primários e unidades geriátricas nos hospitais são duas medidas fundamentais nas políticas para a Terceira Idade. Mas sem especialidade dificilmente se vai conseguir ter estas condições.
É internista. Como vê o facto de ser a Medicina Interna que menos acredita na mais-valia da criação da especialidade de Geriatria?
É verdade… O ex-bastonário de que falei há pouco dizia que receava o esvaziamento da Medicina Interna com a nova especialidade, já que muitos doentes são idosos. Mas essa premissa não faz qualquer sentido, porque o doente idoso que chega ao hospital pode ir para as mais variadas especialidades, incluindo a Medicina Interna.
“Se os mais jovens não se empenharem, vão ter de se confrontar com vários problemas associados a multipatologia, polimedicação, questões sociais, etc.”
Enquanto se mantém esta situação, que medidas devem ser tomadas para que as pessoas mais velhas sejam melhor tratadas?
Deve-se continuar a apostar na formação, nomeadamente pós-graduada. Todos os cursos de Medicina deveriam contemplar um módulo de Geriatria. Não há qualquer razão para que tal não seja posto em prática.
Tem esperança que os médicos mais jovens venham a conseguir avançar com a especialidade?
Sim, aliás, eles já se confrontam com os problemas associados ao envelhecimento. Estima-se que daqui a 20 ou 30 anos, um terço da população portuguesa vai ter 75 ou mais anos e os cuidados serão, maioritariamente geriátricos. Se os mais jovens não se empenharem, vão ter de se confrontar com vários problemas associados a multipatologia, polimedicação, questões sociais, etc. Este Congresso é sobre Dor e, neste ponto, também é essencial dar uma resposta mais adequada. Considera-se que a dor nos mais velhos é algo natural, mas é preciso mudar essa visão.
Tendo em conta a sua experiência, que conselhos gostaria de dar aos colegas mais jovens para não desistirem da Geriatria?
Olhem para as diferenças que existem entre adultos e idosos e deem atenção à Geriatria. Cuidem dos mais velhos, não se limitem a tratar e a curar, independentemente de exercerem Medicina no setor público, privado ou social.
Maria João Garcia
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