“Cerca de 60% das doenças infeciosas emergentes vêm de animais, tanto selvagens, quanto domésticos”

Em entrevista, o toxicologista Ricardo Dinis-Oliveira alerta para a importância de sensibilizar os decisores políticos para o conceito One Health, envolvendo a saúde humana, animal e ambiental, que considera a melhor forma de prevenir futuras pandemias. O especialista falou com o SaúdeOnline à margem do 2.º Congresso Internacional da Unidade de Investigação em Toxicologia (TOXRUN), que decorre hoje e amanhã, no Porto.

“Uma Saúde, uma Sociedade, um Planeta” é o mote do evento. Qual a importância do conceito One Health?

 O conceito de One Health permite, ao olhar para os três vetores estratégicos (i.e., humanos, animais e ambiente), potenciar os ganhos em saúde para a população mundial. A saúde dos seres humanos, a saúde dos animais e a dos ecossistemas estão intimamente interligadas. Alterações nessas relações podem aumentar o risco de efeitos tóxicos e propagação de novas doenças humanas e animais. A interligação entre a saúde humana, animal e ambiental exige estreita colaboração, comunicação e coordenação entre os setores relevantes. One Health é uma abordagem para otimizar a saúde de humanos, animais e ecossistemas integrando esses vetores, em vez de mantê-los separados. Atestando a importância desta nova forma de ver a Saúde, veja-se o recente (março de 2023) e urgente repto lançado pelas Nações Unidas, através dos seus organismos ligados à Agricultura e Alimentação (FAO), à Saúde (OMS), ao Ambiente (UNEP) e à Saúde Animal (WOAH), para que os decisores políticos assumam este conceito de “uma saúde por um planeta saudável”.

 

A pandemia veio comprovar a importância do One Health?

Perfeitamente. A pandemia da covid-19 evidenciou a necessidade de uma estrutura global para melhorar a vigilância e um sistema mais holístico e integrado do que é a Saúde. As lacunas no conhecimento do que é o One Health, e a ausência de abordagens integradas, foram vistas como os principais impulsionadores da pandemia. Temos agora uma oportunidade sem precedentes de fortalecer a colaboração e as políticas nos três vetores da Saúde e reduzir o risco de futuras pandemias e epidemias. Sabemos hoje que cerca de 60% das doenças infeciosas emergentes vêm de animais, tanto selvagens, quanto domésticos. Mais de 30 novos patogénicos humanos foram detetados nas últimas 3 décadas, 75% dos quais tiveram a sua origem em animais.

“Pandemias como a covid-19 ou outras zoonoses, como a monkeypox, (…) continuarão a repetir-se se não se optar por esta abordagem conjunta de Uma Só Saúde”

Tendo em conta este conceito, acredita que vai ser mais fácil reagir a outras pandemias?

Sim. Ao abordar as ligações entre saúde humana, animal e ambiental, One Health é visto como uma abordagem transformadora para melhorar a saúde global. A procura do lucro económico, negligenciando a proteção ambiental, a preparação adequada para fazer frente às emergências, os sistemas de saúde, a infraestrutura de água e saneamento e as redes de segurança social tudo isto se provou serem falsas economias. Daí que seja necessário voltar às origens do conhecimento, onde a Toxicologia representa a primeira área científica que a humanidade conheceu e que depois pautou a evolução do Ser Humano até aos nossos dias. É por isso fundamental voltar à Ciência Mãe e começar a abordar a Saúde em toda a sua dimensão através de três pilares: a saúde humana, a saúde ambiental e a saúde veterinária.

O 2.º Congresso Internacional da Unidade de Investigação em Toxicologia (TOXRUN) aborda esta realidade na perspetiva integrada da saúde. Pandemias como a covid-19 ou outras zoonoses, como a monkeypox, problemas relacionados com segurança alimentar e a saúde mental e o uso de substâncias psicoativas, o aumento das resistências aos antibióticos continuarão a repetir-se se não se optar por esta abordagem conjunta de “Uma Só Saúde”.

A TOXRUN é a primeira unidade de Investigação em Portugal criada exatamente para esta visão futura do que é a Saúde. Pretendemos chamar a atenção para a perspetiva interdisciplinar da Toxicologia moderna e disseminar conhecimentos avançados e inovadores centrados na segurança e riscos para a saúde, na prevenção e mitigação de danos causados por pressões sociais e ambientais sobre a saúde e o bem-estar e na promoção da sensibilização e de iniciativas para construir comunidades resilientes e uma economia circular.

“As atividades humanas criaram stresses nos ecossistemas, tendo daí resultado novas oportunidades para o aparecimento e disseminação de doenças”

De que forma as mudanças climáticas já estão a alterar a Saúde? Fala-se muito em alergias, mas que outros problemas estão a afetar a população e que ainda não são vistos como um perigo?

As atividades humanas criaram stresses nos ecossistemas, tendo daí resultado novas oportunidades para o aparecimento e disseminação de doenças. Entre esses agentes agressores está o comércio de animais, agricultura, pecuária, urbanização, indústrias extrativas, alterações climáticas, fragmentação de habitat e invasão de áreas selvagens. E as alergias não fogem a esta realidade, uma vez que as doenças alérgicas continuam a aumentar tanto em humanos como em animais domésticos. Para todas as espécies de mamíferos afetadas por alergias, uma infinidade de fatores pode estar implicada, como a dieta e composição dos alimentos (e.g., aditivos alimentares), o estado nutricional, o processamento alimentar, a flora microbiana, a poluição da água e do ar, a utilização massificada de medicamentos, antisséticos e desinfetantes, bem como a composição de produtos de higiene corporal, são apenas alguns dos muitos impactos que a imunotoxicologia pretende estudar. Consciente desta realidade, foi recentemente criado um grupo de trabalho em One Health na Sociedade Europeia de Alergia e Imunologia (EAACI) para abordar a importância do conceito One Health para doenças alérgicas, nomeadamente estabelecendo uma rede de especialistas de membros e não membros cobrindo várias disciplinas relacionadas à One Health ou saúde planetária, incluindo medicina, medicina veterinária, nutrição, agricultura, ciências ambientais, epidemiologia, microbiologia, entre outros.

 

A resistência aos antibióticos é um problema grave. Como é que vamos conseguir combater as bactérias se não há novos antibióticos?

Perante os números dramáticos de mortes anuais associadas à problemática da resistência aos antibióticos (1.27 milhões de mortes/ano), a comunidade científica tem, por um lado, tentado recuperar antibióticos antigos através da alteração semi-sintética das moléculas, de forma a aumentar o espetro de ação. Por outro lado, têm-se procurado novas alternativas terapêuticas que possam atuar pelo menos como adjuvantes dos antibióticos e que incluem fagos (vírus que têm ação contra bactérias), vacinas, probióticos, peptídeos com atividade antimicrobiana (produzidos por diferentes microrganismos, incluindo bactérias), entre outros. Bactérias da própria microbiota humana com propriedades benéficas contra bactérias patogénicas multirresistentes são cada vez mais exploradas graças às metodologias de sequenciação potentes atuais e podem ser uma alternativa eficaz com vista a uma medicina cada vez mais dirigida e personalizada no futuro.

No evento vão abordar a problemática da Saúde Mental. A que se deve estar alerta?

Sim, teremos um painel focado nessa problemática. Por exemplo, no âmbito do projeto IoGeneration, foram avaliados os níveis de iodo e o QI das crianças em idade escolar em três regiões do norte de Portugal (representando as regiões urbanas e rurais, costeiras e interiores do país). Os resultados do estudo indicam que, mesmo numa amostra adequada de iodo, níveis elevados de iodo podem aumentar as probabilidades de as crianças apresentarem QI abaixo da média. Estes resultados precisam de ser replicados com outras amostras, particularmente nas regiões onde as concentrações de iodo não são tão extremas. Contudo, alertam para a necessidade do estudo dos efeitos tóxicos neurodesenvolvimentais do excesso do iodo e, ao mesmo tempo, da adequação das políticas de suplementação de iodo em regiões onde os níveis são adequados. É mais uma vez a Toxicologia a explicar a transversalidade que queremos para a compreender melhor a Saúde.

SO

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