Descentralização da Saúde em Portugal: Transferência de Competências ou de Encargos?
Nos últimos anos, a descentralização tem sido apresentada como uma das bandeiras de reforma do Estado português. No papel, pretende aproximar os serviços públicos das populações, reforçar o poder dos municípios e tornar a gestão mais eficiente. Na saúde, esta transformação ganhou corpo com o Decreto-Lei n.º 23/2019, que transfere algumas competências do Ministério da Saúde para as autarquias. Mas afinal: estamos perante uma verdadeira reforma ou apenas uma redistribuição de encargos?
O que mudou?
De acordo com a lei, os municípios passaram a assumir responsabilidades ligadas a infraestruturas, manutenção de equipamentos, transportes e assistentes operacionais. Em contrapartida, a gestão clínica e técnica permanece no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Na prática, isto significa que as câmaras municipais passaram a gerir edifícios, contas da luz e da água, limpeza e vigilância. Mas continuam sem poder decidir sobre a organização da resposta clínica ou sobre a forma como os cuidados são prestados.
As promessas
Entre as vantagens apontadas estão:
- maior proximidade às necessidades locais;
- gestão mais ágil das infraestruturas;
- responsabilização política dos autarcas.
As fragilidades
Contudo, também existem riscos evidentes:
- Quebra da cadeia de comando — Uma gestão eficaz exige uma linha clara de autoridade. Com responsabilidades repartidas, a coordenação pode tornar-se mais difícil.
- Mais burocracia — Para articular esferas clínica e logística, a lei prevê múltiplos órgãos de governação partilhada (Conselho Municipal de Saúde, Comissão de Acompanhamento, entre outros). O risco é criar mais reuniões do que soluções.
- Subfinanciamento — As verbas transferidas podem ser insuficientes, sobretudo para edifícios degradados. Em muitos casos, os municípios herdam encargos sem garantias de recursos adequados.
- Participação limitada — Embora exista a Estratégia Municipal de Saúde, esta tem de alinhar-se com planos nacionais e regionais. Assim, a autonomia local acaba por restringir-se à esfera logística, não à definição da política de saúde.
O que fazem outros países?
A Europa mostra diferentes caminhos:
- Países Baixos: municípios assumem cuidados continuados e sociais.
- Noruega: municípios gerem cuidados primários; regiões, os cuidados especializados.
- Itália: regiões têm autonomia, mas isso gerou disparidades na qualidade e acessibilidade.
- Dinamarca: modelo partilhado – Estado regula, regiões gerem hospitais e ambulatório, municípios asseguram cuidados continuados e reabilitação.
- Suécia: três níveis de governação (nacional, regional, municipal), com responsabilidades claras em cada um.
Em comparação, Portugal preferiu uma abordagem cautelosa, limitando-se a transferir encargos logísticos. Resultado: as câmaras municipais tornaram-se gestores de meios, mas não atores de governação clínica.
E agora?
É inegável que o processo de descentralização já começou e dificilmente terá marcha atrás. A verdadeira questão é: queremos municípios apenas como administradores de edifícios e contas de eletricidade ou como parceiros ativos na governação da saúde? Se a descentralização é irreversível, será necessário repensar os mecanismos de coordenação da prestação e financiamento. Só assim deixará de ser um mero exercício de redistribuição de encargos e poderá traduzir-se em ganhos reais para os cidadãos e para o SNS.
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