5 Mar, 2024

“Se existe suspeita de perda auditiva, esta situação tem de ser encarada como um problema de saúde”

De acordo com uma iniciativa de 2018 do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), cerca de 1,6 milhões de pessoas admite sentir dificuldades auditivas. Além disso, internacionalmente, estima-se que 20 a 25% da população sofra com este problema. Em entrevista, João Ferrão, especialista em Audiologia, fala sobre a importância da intervenção precoce em situações de perda auditiva.

Existem sinais de perda auditiva que tendem a ser desvalorizados pelos doentes?

Sim. Quanto a este ponto considero importante fazer uma distinção, uma vez que existem sinais de alarme que muitas vezes são descurados desde a infância e, por outro lado, existem situações de perda auditiva por envelhecimento da pessoa.

Atualmente, aquando do nascimento de um bebé, um dos exames realizados é o rastreio auditivo neonatal. Através deste exame sabemos que uma em cada mil crianças nasce com perda auditiva profunda, sendo que essas crianças são intervencionadas e acompanhadas desde os seus primeiros dias. Quando chegamos à fase dos 3/4/5 anos existe outro fator que deve gerar algum alerta entre os pais, nomeadamente os processos infeciosos a nível do ouvido médio que podem não causar dor, mas que podem provocar perda auditiva transitória e que pode conduzir a uma perda auditiva permanente no futuro.

Para além da dor de ouvidos, nesta situação devemos ter em conta alguns sinais de alerta, como o facto de a criança começar a falar mais alto ou a aumentar o volume da televisão, ou a pedir para que repitam o que lhe dizem, ou a deixar de conseguir compreender conversas em tons de voz mais baixos. Todas as situações mencionadas devem ser sinais de alerta que levem os pais a procurar ajuda de um médico otorrinolaringologista de forma a que este profissional realize um diagnóstico relativo à situação auditiva da criança.

Para além disso, existe a presbiacusia, ou seja, a perda auditiva por envelhecimento, com um nível de prevalência muito significativo acima dos 70 anos e ainda mais significativo acima dos 80 anos. Neste casos existem sinais de alerta muito semelhantes aos das crianças. Hoje em dia está mais do que demonstrado cientificamente que existe uma correlação muito grande entre a perda auditiva e o declínio cognitivo. Por esse motivo, se notamos uma maior dificuldade nas nossas capacidades auditivas ou se notamos essas mesmas diferenças de comportamento nos nossos familiares, estes são sinais de alerta que devem ser levados a sério.

“É fundamental que perante os primeiros sintomas de perda auditiva haja uma identificação e um aconselhamento, de modo a diminuir a probabilidade de aparecimento de processos demenciais”

Como é que se reage perante um diagnóstico de perda auditiva?

Se existe suspeita de perda auditiva, seja em que faixa etária for, esta situação tem de ser encarada como um problema de saúde. Existem dois profissionais de saúde que podem intervir na perda auditiva: o médico otorrinolaringologista e o audiologista. Quando existem suspeitas, a primeira linha de intervenção, exceto os rastreios auditivos, deve ser sempre o médico otorrino. Mesmo que o primeiro passo seja um rastreio auditivo, e havendo uma confirmação de perda auditiva, deve ser procurado um profissional, de modo a realizar-se um diagnóstico mais aprofundado.

 

Relativamente ao campo do tratamento, existem avanços recentes?

Sim, e novamente, existem dois tipos de perda auditiva: as reversíveis, que podem ser ultrapassadas através de tratamentos médico-cirúrgicos ou farmacológicos, e as irreversíveis, como a mencionada presbiacusia, que é uma degeneração funcional, sensorial,  e que pode também ser neurológica, que leva à perda auditiva. Nestes casos não há, ainda, um tratamento possível. Existem alguns desenvolvimentos nessa área, mas ainda é tudo muito precoce.

Existe, contudo, uma solução que passa pela reabilitação auditiva através de dispositivos médicos por estimulação acústica, entendam-se os aparelhos auditivos, ou em casos mais específicos ou mais extremos, os implantes auditivos. Estes últimos podem ser integrados ou elétricos. Os avanços da tecnologia têm permitido uma adaptação cada vez maior a um estilo de vida ativo, com funcionalidades que permitem que a pessoa tire partido, não só de uma melhoria de audição, mas também de melhor comodidade na utilização desses mesmos dispositivos.

 

Quais são os passos essenciais para uma reabilitação auditiva eficaz?

Começando este processo, o primeiro passo é o diagnóstico médico. Confirmando-se que não existe outro tipo de solução a não ser a reabilitação auditiva, precisamos de entender quais são as necessidades específicas de cada pessoa, uma vez que os processos de reabilitação são individuais e graduais. Seguidamente, é preciso personalizar a correção auditiva com estas mesmas necessidades. Além disso, tem de existir um correto aconselhamento gradual, porque caso uma pessoa tenha estado 5/6 anos com perda auditiva sem ter dado conta do sucedido é necessário preparar o cérebro para receber esta nova informação proveniente do som, que é recebida pelos ouvidos, mas tratada pelo cérebro.

“Existe a etapa do diagnóstico, da identificação das necessidades, da sugestão de expectativas e a etapa do acompanhamento contínuo até satisfazermos as plenas necessidades individuais das pessoas”

 

Existem formas de prevenção da perda auditiva?

Sim. A principal forma de prevenção da perda auditiva é a sensibilização. Se estivermos sensibilizados para os fatores já mencionados estaremos mais atentos para uma intervenção precoce. Além disso, existem áreas muito críticas e que devem ser abordadas em termos sociais. Por exemplo, com a pandemia houve um aumento do teletrabalho, que por sua vez levou a que se fizessem mais reuniões online com as pessoas a utilizarem auscultadores durante mais tempo. Se não houver um controlo de volume e de duração da exposição, isto pode levar a uma implementação lenta de perda auditiva.  Do mesmo modo, a exposição sistemática a concertos, discotecas e a situações que envolvam ruídos muito intensos e música muito alta podem também levar à perda auditiva. Outro exemplo são as situações a nível laboral. Quando é aconselhado utilizar proteção auditiva, as pessoas devem usar essa mesma proteção, caso contrário este é também um fator que aumenta a probabilidade de desenvolver perda auditiva.

“A diabetes, a pressão arterial e o tabagismo também já revelaram evidências de fatores comuns à perda auditiva”

 

Quais são os mitos e as verdades relativamente à audição que gostaria de destacar?

Quanto a verdades, existe sim, uma solução para a perda auditiva. Felizmente, com a evolução da tecnologia, toda a perda auditiva tem uma solução, que pode ser mais ou menos efetiva, de acordo com o tipo e etiologia do problema.

No campo dos mitos, uma das questões que vale destacar é que é errado pensar que a perda auditiva é um problema que só afeta as pessoas com maior idade. Estatisticamente, sim, existe uma probabilidade maior, mas no geral afeta todas as faixas etárias. Por exemplo, no estudo de 2018 realizado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), cerca de 26% das pessoas que identificaram ter dificuldades auditivas tinham menos de 45 anos.

Outro mito diz respeito ao facto de as pessoas acreditarem que não é preciso procurar ajuda assim que revelam sinais de perda auditiva. Como abordámos anteriormente, existe um impacto silencioso que muitas vezes não é considerado e que está relacionado com a total correlação que existe entre a função auditiva e a função cognitiva. Muitas vezes, o adiar a resolução do problema vai comprometer os resultados do ponto de vista do processo de mutação auditiva, tal como também pode levar ao aparecimento precoce de processos demenciais. Este mito perigoso de que a intervenção precoce não é importante, é talvez o mais crítico do ponto de vista social.

 

CG

Notícia relacionada

Avanços tecnológicos e científicos para a inclusão das pessoas com deficiência auditiva

Print Friendly, PDF & Email
ler mais
Print Friendly, PDF & Email
ler mais