25 Nov, 2025

“Pretendo reforçar a SPO como uma entidade agregadora, multidisciplinar e inovadora”

Nuno Bonito, diretor do Serviço de Oncologia Médica do IPO Coimbra, é o presidente eleito da Sociedade Portuguesa de Oncologia e tomará posse em fevereiro de 2026. Em entrevista, fala sobre os objetivos do seu mandato, a importância da investigação colaborativa, a proximidade com os doentes e os desafios da Oncologia em Portugal.

“Pretendo reforçar a SPO como uma entidade agregadora, multidisciplinar e inovadora”

Vai brevemente assumir a presidência da SPO. O que o motivou a candidatar-se e a assumir este desafio?
Assumir a presidência da SPO é, para mim, uma enorme responsabilidade e um grande privilégio. Sabemos que esta sociedade é uma referência na Oncologia nacional e internacional e liderá-la significa contribuir ativamente para a melhoria dos cuidados oncológicos em Portugal.
O que pretendo é promover alguma transformação que permita consolidar uma sociedade mais próxima dos sócios e dos doentes, mais inovadora e mais interventiva. Quero reforçar a SPO como uma entidade agregadora, multidisciplinar e inovadora.

 

Quais são os principais objetivos que delineou para este mandato?
Do ponto de vista estratégico, o plano de ação assenta em sete pilares: formação contínua; investigação colaborativa; redes multidisciplinares; diretrizes baseadas em evidência; comunicação ativa; informação acessível; e representação institucional. Estes pilares refletem uma visão mais integrada da Oncologia, centrada na pessoa e na qualidade dos cuidados, sempre numa perspetiva multidisciplinar.

Além disso, a SPO tem vários grupos de trabalho e um dos objetivos será reforçar essa dinâmica, trabalhando em estreita articulação com a Direção. Pretendemos recriar uma rede colaborativa por patologia, com participação ativa do NIJE (Núcleo de Internos e Jovens Especialistas) e de diferentes especialidades, promovendo uma abordagem verdadeiramente multidisciplinar.

Queremos lançar plataformas de e-learning, dinamizar o site da SPO, promover workshops e criar programas de mentoria, nomeadamente para internos de formação especializada.
Vamos apostar na formação contínua, transversal e adaptada às necessidades dos profissionais, através de parcerias nacionais e internacionais. O NIJE terá um papel central neste processo, garantindo a integração dos jovens médicos.

 

A indexação da revista da SPO, tão defendida pela Direção de Passos Coelho, continuará a ser um dos objetivos?
Sim, continuará a ser um objetivo prioritário, não apenas pela relevância científica que a indexação confere à revista, mas também pelo impacto que terá na visibilidade internacional da produção académica da SPO e também nacional. A indexação é um passo fundamental para garantir maior credibilidade, rigor e disseminação do conhecimento, permitindo que os trabalhos publicados sejam integrados em bases de dados de referência e, assim, contribuam para a consolidação da Oncologia portuguesa no panorama global. Trata-se de um compromisso estratégico que reforça a missão da sociedade enquanto promotora de ciência de qualidade e inovação.

 

Como descreve o estado atual da Oncologia em Portugal e que melhorias considera prioritárias, sobretudo para os doentes?
Tem sido feito um esforço significativo, ao longo dos vários mandatos, para aproximar a SPO dos doentes, mas é imperativo sermos proativos e estruturados nessa relação. A comunicação deve evoluir para um modelo verdadeiramente bidirecional, transparente e acessível, recorrendo a ferramentas digitais, redes sociais e newsletters periódicas, que permitam uma interação contínua e informada. Pretendo desenvolver plataformas interativas, como o portal ‘SPO Doente’, com conteúdos multimédia e linguagem clara, que promovam literacia em saúde e empoderamento das pessoas e das famílias.

Contudo, não podemos ignorar que esta ambição decorre num contexto marcado por uma enorme carga assistencial nos serviços de Oncologia, onde os profissionais enfrentam agendas clínicas intensas e exigentes. Esta realidade condiciona a disponibilidade para iniciativas complementares, como a comunicação estruturada ou a participação em projetos de literacia. Por isso, é essencial que a SPO assuma um papel facilitador, criando mecanismos que integrem estas ações na prática clínica, sem aumentar a pressão sobre os profissionais.

Paralelamente, considero que a SPO deve reforçar a sua intervenção política e institucional, tornando-se uma voz ativa na definição de políticas públicas em Oncologia. Para tal, é crucial criar observatórios, promover debates – inclusive éticos – e representar a sociedade junto das entidades governamentais e científicas, sempre com uma abordagem baseada em evidência, centrada na equidade e na qualidade dos cuidados. Só assim conseguiremos responder aos desafios atuais, garantindo que a inovação e a proximidade aos doentes coexistem com a sustentabilidade dos serviços e a valorização dos profissionais.

 

A SPO pretende ter, então, um papel mais ativo junto do Ministério da Saúde e de outras entidades públicas?
Sim, exatamente. A SPO pretende assumir um papel ativo e estruturado, estabelecendo canais permanentes de diálogo com o Ministério da Saúde e outras entidades públicas. Este envolvimento visa influenciar políticas de saúde baseadas em evidência, promover a equidade no acesso às terapêuticas inovadoras e garantir a integração dos Cuidados Paliativos. Queremos também contribuir para a definição de estratégias nacionais de rastreio, apoiar a criação de clínicas de sobreviventes e reforçar a literacia em saúde. Para isso, será fundamental criar observatórios, emitir pareceres técnicos e participar em grupos de trabalho ministeriais, assegurando que a voz da Oncologia é ouvida nas decisões que impactam diretamente os doentes e os profissionais.

Importa sublinhar que este papel ativo deve também responder à realidade da grande carga assistencial que caracteriza os serviços de Oncologia. A SPO pretende defender políticas que reconheçam tempo protegido para investigação, formação e participação em projetos estratégicos, sem comprometer a qualidade assistencial. Só com esta reorganização será possível garantir que os profissionais não são sobrecarregados e que a inovação científica e a proximidade aos doentes coexistem com a sustentabilidade dos cuidados.

 

Tendo em conta que há cada vez mais sobreviventes de cancro, considera que recebem o acompanhamento adequado?
Essa é uma questão crítica e amplamente debatida. Atualmente, o acompanhamento dos sobreviventes de cancro é heterogéneo e, em muitos casos, insuficiente, sobretudo porque as clínicas de sobreviventes não estão disponíveis em todas as instituições. Este é um vazio que a SPO pretende ajudar a colmatar, assumindo um papel facilitador na criação de redes e plataformas que assegurem um seguimento estruturado e equitativo.

É fundamental garantir que estes doentes têm acesso a cuidados integrados, que incluam não só vigilância clínica, mas também apoio à reintegração profissional e social, frequentemente comprometida por limitações físicas ou psicológicas, bem como estratégias para a gestão da toxicidade crónica. Para isso, a SPO irá fomentar parcerias institucionais e disponibilizar ferramentas digitais que aproximem os doentes da informação e dos recursos necessários.

Paralelamente, é essencial investir na literacia em saúde, disponibilizando conteúdos claros e rigorosos que permitam ao sobrevivente compreender os riscos, agir de forma informada e saber a quem recorrer. Este é um compromisso que exige articulação entre profissionais, instituições e decisores políticos, para que a sobrevivência não seja apenas um indicador clínico, mas uma realidade acompanhada com qualidade e dignidade. A articulação com as associações de doentes será fundamental.

 

E no que toca aos Cuidados Paliativos e Continuados, continuam a existir lacunas?
Sim, claramente. Persistem lacunas significativas nos Cuidados Paliativos, sobretudo na doença avançada, onde a resposta ainda é insuficiente e heterogénea. É fundamental garantir uma intervenção ajustada ao nível de cuidados que cada doente necessita, assegurando uma integração efetiva entre as equipas de Oncologia e os profissionais de Cuidados Paliativos. Estes desempenham um papel essencial na gestão global do doente, não apenas no controlo sintomático, mas também na facilitação da continuidade terapêutica e na tomada de decisão clínica.

Para alcançar este objetivo, é necessário promover uma formação robusta e transversal, capacitando os profissionais para identificar precocemente as necessidades e integrá-las de forma adequada, proporcional à evolução da doença. A SPO pretende assumir um papel ativo na definição de protocolos, na criação de redes colaborativas e na sensibilização das instituições para que os Cuidados Paliativos sejam vistos como parte integrante do continuum assistencial, garantindo dignidade e qualidade em todas as fases da doença.

Acresce ainda a problemática da gestão do doente oncológico em contexto de urgência hospitalar, frequentemente em serviços de agudos que não dispõem de equipas diferenciadas em Oncologia e/ou Cuidados Paliativos. Esta realidade gera sobrecarga assistencial, decisões clínicas complexas e, por vezes, intervenções desajustadas às necessidades do doente. É imperativo criar mecanismos que permitam uma articulação eficaz entre Oncologia, Urgência e Cuidados Paliativos, assegurando que mesmo em situações críticas se mantém uma abordagem centrada na pessoa, evitando procedimentos fúteis, ou desinvestimento precoce, garantindo conforto e qualidade de vida.

 

Como vê o aumento de casos de cancro em idades mais jovens e que medidas considera prioritárias para responder a este fenómeno?
O aumento da incidência de cancro em idades mais jovens constitui um fenómeno epidemiológico relevante e preocupante, com implicações clínicas, sociais e económicas. Este padrão, particularmente evidente em neoplasias como o cancro colorretal, exige uma abordagem multidimensional. A antecipação da idade dos rastreios é uma medida prioritária, mas deve ser sustentada por dados robustos que permitam definir critérios de risco ajustados à realidade nacional. É igualmente essencial aprofundar a caracterização molecular e clínica destes tumores, que frequentemente apresentam comportamentos biológicos distintos dos observados em populações com idade mais avançada, implicando estratégias terapêuticas diferenciadoras.

Além da dimensão clínica, importa considerar o impacto psicossocial: muitos destes doentes encontram-se em plena atividade profissional e em fases críticas da vida familiar, pelo que é imperativo promover políticas que assegurem condições laborais adaptadas e mecanismos de reintegração social. A criação de um registo nacional específico para casos de cancro em idades precoces permitiria uma análise epidemiológica rigorosa, orientando decisões sobre rastreio, prevenção e investigação translacional.

Este aumento da incidência em idades jovens reforça também a necessidade de garantir acesso equitativo a terapêuticas inovadoras e a participação ativa em ensaios clínicos.

 

Como avalia o acesso às terapêuticas inovadoras e a participação em ensaios clínicos, sobretudo em cancros mais raros?
A equidade e a qualidade dos cuidados são as nossas prioridades. A investigação é um dos pilares estratégicos da SPO, quer a de iniciativa do investigador, quer a investigação patrocinada (sponsored research). Como disse, estes são um dos pilares estratégicos da SPO.
Como tal, pretendemos criar o portal “SPO Investigação”, com centralização de dados clínicos e genómicos, o que também permitirá caracterizar melhor a população e apoiar projetos que promovam a ligação a redes internacionais.

Queremos valorizar a produção científica nacional e organizá-la melhor, porque acreditamos que a investigação é essencial para transformar conhecimento em melhores práticas clínicas.

 

E as condições de trabalho dos oncologistas, investigadores e outros profissionais de áreas afins?
Essa é uma questão estrutural e crítica para a sustentabilidade da Oncologia em Portugal. Atualmente, os modelos de contratualização e os objetivos hospitalares permanecem excessivamente centrados no volume de atividade, em detrimento dos outcomes clínicos e da qualidade assistencial. Esta lógica conduz a uma sobrecarga significativa dos profissionais e à ausência de tempo dedicado para atividades de investigação e formação.

É imperativo evoluir para um modelo organizacional que reconheça a complexidade da prática oncológica, integrando tempo protegido para investigação, atualização científica e participação em projetos estratégicos. A atividade assistencial, compreensivelmente intensa, não pode continuar a ser dissociada da produção de conhecimento, sob pena de comprometer a inovação e a qualidade dos cuidados. A SPO defenderá a criação de plataformas institucionais de apoio, mecanismos de flexibilização e políticas que valorizem a carreira médica de forma equilibrada.

Este é um ponto que exige uma reflexão nacional e uma intervenção concertada entre sociedades científicas, instituições hospitalares e decisores políticos, para que a excelência assistencial seja indissociável da investigação e da formação contínua.

 

Que estratégias considera importantes para apoiar e motivar estes profissionais? Passam um pouco por estas plataformas de apoio?
Sim, passam precisamente por essas plataformas de apoio, mas também por uma reorganização estrutural da atividade assistencial. É essencial evoluir para modelos de gestão que valorizem os outcomes clínicos e a qualidade dos cuidados, criando indicadores que reflitam a complexidade da prática oncológica e todo o percurso clínico do doente, não a focalizando apenas na estratégia cirúrgica.

Entre as estratégias prioritárias, destacam-se: tempo protegido para investigação e atualização científica nos planos de atividade hospitalar; a criação de programas de mentoria e formação avançada, com apoio institucional e parcerias nacionais e internacionais; o desenvolvimento de plataformas digitais, que facilitem a partilha de conhecimento, integração em redes colaborativas e acesso a recursos educativos; a definição de incentivos à participação em ensaios clínicos e projetos de investigação, reconhecendo este contributo como parte integrante da carreira médica; a promoção de políticas de bem-estar e equilíbrio profissional, reduzindo a sobrecarga assistencial e garantindo condições para uma prática sustentável.
Estas medidas são fundamentais para motivar os profissionais, assegurar a retenção de talento e garantir que a inovação científica caminha lado a lado com a excelência assistencial.

 

Além dos sete pilares que mencionou, quais serão os principais desafios da SPO nos próximos anos?
Além de tudo o que já tenho vindo a falar, um dos principais desafios é perceber que este é um projeto coletivo; de equipa e que só faz sentido com o envolvimento ativo de todos os sócios, que devem caminhar lado a lado com os doentes e com as suas associações.
Queremos construir uma Oncologia mais forte, mais humana e mais inovadora. Vejo o futuro da SPO como colaborativo, inclusivo e movido pela ação, sem esquecer nenhum dos seus intervenientes.

 

Que mensagem gostaria de deixar aos sócios da SPO e aos participantes do congresso, enquanto futuro presidente?
Pretendemos dar continuidade ao trabalho desenvolvido pelas equipas e presidentes anteriores, reforçando a SPO como uma entidade agregadora, multidisciplinar e inovadora.
Queremos uma sociedade científica colaborativa, inclusiva e movida pela ação, com uma intervenção ativa junto dos vários intervenientes do setor.

Sílvia Malheiro

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