Carta a um futuro interno de Medicina Geral e Familiar
Médica Interna de MGF

Carta a um futuro interno de Medicina Geral e Familiar

Caro futuro interno de Medicina Geral e Familiar ,

Por favor lembre-se. Lembre-se de como é ser doente!

Lembre-se da angústia do desconhecido, lembre-se da agonia de não saber o que causou a sua misteriosa dor, lembre-se do desejo desmedido de encontrar um médico que demonstrasse empatia pelo seu sofrimento.

Os próximos anos de sua vida continuarão repletos de exames, trabalhos científicos, cursos e estágios e a dedicação plena nesta fase será a base para o seu futuro enquanto médico de família. Nunca fique satisfeito em saber apenas o “suficiente”, porque o seu próximo utente poderá não ser salvo pelo “suficiente”.

Lamentavelmente, após concluirmos o curso de medicina consideramo-nos cientistas imperturbáveis, hábeis em articular os conhecimentos que retiramos dos livros e a associá- los a um conjunto de sinais e sintomas, encontrando-lhes um nexo e exercendo de forma exímia a arte do diagnóstico como se de um jogo de palavras cruzadas se tratasse. De facto, a educação que trazemos da faculdade torna-nos quase amnésicos em relação à importância da narrativa do doente, à qual devemos dar espaço para ser contada e ouvida.

O Médico de Família deve ser um cientista profundamente humano. Nuno Grande, JN 10.2000

Um bom médico de família é aquele que apresenta não só a capacidade de realização de diagnósticos e uso prudente dos recursos preventivos, diagnósticos e terapêuticos, um bom médico de família é também aquele que tem habilidade para responder apropriadamente às necessidades de pacientes complexos em situações reais de limitações múltiplas e aquele que mais do que entender a singularidade biológica entende a individualidade da pessoa doente.

A adequação da linguagem é também algo de muito relevante no exercício clínico da medicina geral e familiar, uma vez que existe um inevitável desencontro entre a linguagem médica e do doente, como se de dois idiomas diferentes se tratassem. A linguagem com que o doente conta a sua história é diferente da linguagem do técnico que explica diagnósticos e estabelece planos terapêuticos, e por isso a comunicação com o doente deve privilegiar a utilização de uma linguagem cristalina desprovida dos “apetrechos” da linguagem científica rigorosa.

Mais do que a arte de diagnóstico, informar, educar, traduzir, aconselhar, serão cada vez mais tarefas do médico de família do futuro.

Na Medicina Geral e Familiar a passagem do modelo teórico biopsicossocial à prática só se torna possível recorrendo a um método clínico, sendo que o método centrado no paciente e proposto por Mc Whinney parece ser o mais adequado. De acordo com este modelo a “agenda do doente” deve assumir uma importância equivalente à “agenda do médico”. A aplicação deste método clínico tem importantes e decisivas implicações nos dias de hoje. Na medicina praticada há não muitas décadas atrás era brutal a assimetria entre o conhecimento médico e conhecimento do doente, sendo este quase nulo. Na atualidade e com a possibilidade do recurso a inesgotáveis fontes de informação de validade amplamente variável, o diálogo médico-doente tem também subjacente o juízo implícito do

conhecimento ou da competência do clínico, e temos de aprender a jogar com novas regras. A medicina moderna é uma medicina mais complexa e o ato médico perdeu algumas das suas características fundamentais. A admissão errónea de que os direitos do doente são equivalentes aos direitos de consumidor é responsável pela sensação, não rara, de que muito pouco nos distingue de um empregado de restauração ou de uma caixa de supermercado. Vivemos numa era em que o doente, no esplendor dos seus direitos, transforma o momento de consulta numa espécie de negócio onde pretende comprar a cura ou o melhor tratamento, que definiu previamente à consulta de acordo com o diagnóstico que estabeleceu com base numa pesquisa bibliográfica desprovida de qualquer validade científica.

O avanço do conhecimento médico, das tecnologias diagnósticas e terapêuticas, e o desenvolvimento de fármacos poderosos mas de efeitos secundários importantes vieram também eles alterar substancialmente a natureza da prática médica atual. A Medicina Geral e Familiar de hoje é caracterizada pela frequente aplicação excessiva de medidas preventivas e diagnósticas em utentes assintomáticos e naqueles com doença instalada. Assim, enquanto médicos do futuro é importante terem sempre em mente quando não devem fazer nada ou quando simplesmente devem “esperar e ver”. Nem todas as intervenções médicas beneficiam as pessoas da mesma forma e não devemos ceder a uma verdade social admitida como irrefutável de que “é melhor prevenir do que remediar”.

Os médicos de hoje apresentam uma menor tolerância para com as oscilações e variações do processo saúde-doença individual, intervindo de forma precoce mas nem sempre adequada. A rotulagem dos doentes com diagnósticos precipitados cresce velozmente como resultado de uma diminuição da margem de “normalidade” e conduz à aplicação de uma série intervenções passíveis de causar dano desnecessário. Desta forma, o intervalo de segurança, a margem entre os benefícios e os riscos também diminui. De acordo com um dos professores com quem tive o privilégio de me cruzar durante o meu percurso académico “No cérebro desta Medicina contemporânea se juntam em inesperadas sinapses, incerteza, risco e erro” (João Lobo Antunes). A medicina moderna cresce no meio de uma constelação de incertezas, sendo várias suas fontes. A sua interferência no processo clínico de decisão é grande e por vezes limitadora. Saber lidar com a incerteza é saber reconhecê-la como uma aliada, reconhecer com honestidade a sua presença permanente e indubitável, e humildemente saber partilhá-la com os nossos doentes integrando-os no processo de decisão.

A medicalização de estados de pré-doença e de fatores de riscos teve uma assunção

crescente nos últimos anos e poderá perigosamente traduzir-se numa redução na qualidade de vida ao converter pessoas saudáveis em doentes.

Enquanto futuros internos de medicina geral e médicos de família é importante que não considerem erradamente fatores de risco como doença e não permitam que a diferença entre prevenção e cura se torne indistinta. Usem a posição priveligiada que ocupam no modelo organizativo da saúde, como médicos que prestam cuidados de forma contínua e longitudinal, e uma das características que vos distingue dos demais especialistas, o alto valor preditivo negativo que apresentam. Esta particularidade permite que com maior frequência acertem quando dizem que alguém não tem determinada patologia, evitando a utilização de recursos desnessários.

A longitudinalidade, característica exclusiva do médico de família, não se esgota na possibilidade de utilização eficiente de recursos e preserva em si uma capacidade que poderá alegrar aqueles que dedicarão os próximos quatro anos, à prática de uma medicina personalizada com foco no doente no seu contexto familiar, social e cultural. De acordo com as conclusões de uma revisão sistemática realizada no Reino Unido e publicada em 2017 no British Medical Journal, os cuidados prestados de forma longitudinal diminuem a taxa de mortalidade e somos nós internos, vós futuros internos e todos os especialistas de Medicina Geral e Familiar os responsáveis pelo aumento da esperança média de vida e para que esta ocorra com qualidade e livre de sofrimento.

Como mensagem final gostaria de ressaltar que a escuta respeitosa permanecerá,  no futuro dos próximos internos de Medicina Geral e Familiar, como o melhor instrumento diagnóstico e terapêutico. Os médicos são dotados de capacidades de comunicação que os coloca numa posição de falar mais do que escutar. Aqui o conselho passa por olhar para além dos sintomas, sem a intromissão de erros de refração e tentar compreender o significado oculto das palavras. Não se apaixone à primeira vista por um diagnóstico! Não o encerre precocemente. Lide com tranquilidade com os períodos de silêncio e transforme-os numa oportunidade para a colheita e interpretação da linguagem não verbal expressa de forma contínua pelo doente.

Trate todos os doentes com a dignidade e compaixão que deseja ter, oiça sempre as suas preocupações e responda às suas dúvidas. Respeite a responsabilidade que lhe foi dada e trate sempre os seus doentes como espera um dia ser tratado, porque inexoravelmente existirá um dia em que estará do outro lado.

Seja ótimo, seja o melhor médico de família que conseguir.

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