Afinal temos médicos a mais ou a menos?
Diretor do Serviço de Medicina Interna do CHUP/Presidente Cessante da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

Afinal temos médicos a mais ou a menos?

Os malabarismos estatísticos são uma arma política usada vezes sem conta. Há sempre um ângulo que nos é favorável, quando queremos convencer alguém dos nossos argumentos. O interessante da coisa é usarmos números verdadeiros, que dão suporte aparente às nossas convicções, com o propósito de manipular o nosso raciocínio da questão essencial. É, como diz o povo, com a verdade me enganas!

Saber se temos médicos em número adequado à nossa população, mesmo sem entrar nos detalhes do seu envelhecimento galopante, deveria ter uma resposta rápida, pelo menos na comparação com outros países europeus. Mas não é assim neste Portugal de meias tintas.

A Ordem dos Médicos dá o número de médicos inscritos, estejam ou não no ativo, exerçam Medicina em Portugal ou no estrangeiro, tenham a idade que tiverem.

O Ministério da Saúde, mesmo que seja evidente a carência de médicos no SNS, mostra sempre um aumento substancial de médicos contratados, esquecendo-se de dizer a enorme percentagem dos que estão com horário reduzido, muitas vezes com menos de 20h por semana. Depois, também contabiliza as revoadas de Internos Gerais e de Formação Específica, a quem só lhes é permitida uma medicina tutelada, sem capacidade de trabalho autónomo.

A ACSS, apesar das perguntas anuais que faz aos Serviços (parece que os dados são perdidos ou nunca lidos) acerca dos médicos que têm e das projeções para os anos seguintes, continua num angustiante desconhecimento da realidade. De facto, a subespecialização ocorre em todas as especialidades médicas, pelo que é um erro colossal pensar que os Internistas dum Hospital estão no Serviço de Medicina Interna (MI) e inferir desse número a sua capacidade assistencial.

O Colégio de Especialidade de MI, num trabalho fantástico que fez, demonstrou que 30% dos Internistas não estão nos Serviços de Medicina, exercendo as suas funções no Serviço de Urgência, no Serviço de Oncologia, nos Cuidados Paliativos, nos Cuidados Intermédios e Intensivos, na Medicina Peri-operatória, nas Unidades de Orto-Geriatria ou nas Unidades de Transplante Hepático.

Para além dessas áreas tão diferenciadas, que marcam a evolução moderna do exercício da MI, os Internistas estão nos órgãos de gestão dos hospitais e também nas várias Comissões a que a lei obriga, para garantia da qualidade assistencial: Comissão de Infeção, Comissão de Qualidade e Risco, Comissão do Processo Clínico Eletrónico e Comissão de Farmácia e Terapêutica. Todas estas Comissões implicam muitas horas de trabalho, que por norma não são contabilizadas, para serem subtraídas ao horário semanal disponível para assistência aos doentes.

A organização racional do trabalho médico é essencial para a motivação do profissional, redução do risco do erro e do burnout e garantia dos melhores cuidados de saúde. É preciso definir, para cada especialidade, o número de doentes e de horas por semana que cada médico deve ter quando tem responsabilidade de doentes internados no hospital. Os Enfermeiros têm ratios de enfermeiro por doente, de acordo com a tipologia das unidades de internamento. Temos de fazer o mesmo. Não podemos ver com segurança mais 30% de doentes da lotação base dos Serviços de MI, como acontece todos os anos de dezembro a maio, com os mesmos médicos, com o mesmo horário que têm disponível.

Há alguma esperança de que a Direção Executiva do SNS, com o conhecimento profundo que tem deste assunto, queira iniciar um novo caminho, que permita uma gestão das pessoas com a verdade dos números. Uma boa planificação de recursos tem de ser baseada em dados fiáveis, credíveis e não manipulados. Para isso, devem ser muito valorizadas as informações dos Diretores de Serviço, que sabem melhor do que ninguém com quem podem contar.

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