“A velocidade da aquisição de conhecimento alterou de forma enorme a nossa compreensão do cancro”

José Luís Passos Coelho termina, em fevereiro, o mandato como presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia (SPO). No âmbito do Congresso Nacional de Oncologia, que este ano tem como mote “Beyond the Limits”, o oncologista reflete sobre a rápida evolução do conhecimento científico, o impacto da inovação na prática clínica, os desafios na formação, a importância da colaboração internacional e as prioridades para o futuro da Oncologia portuguesa.

“A velocidade da aquisição de conhecimento alterou de forma enorme a nossa compreensão do cancro”

Este ano, o congresso tem como mote uma aposta na inovação para irmos juntos além dos limites: “Beyond Limits. Vamos além. Vamos juntos”. O que significa exatamente, numa área como a Oncologia, a escolha deste tema para o congresso?
O tema, “Beyond the Limits”, é, de certa forma, o reflexo do que tem sido a prática da Oncologia até aos dias de hoje. Digo isto, porque o que um oncologista faz no seu dia a dia, quer na prática clínica quer na investigação, tem hoje muito pouco a ver com o que fazia há 20 anos. A velocidade de crescimento do conhecimento alterou de forma enorme a nossa compreensão do cancro e, do ponto de vista terapêutico, permitiu desenvolver um número muito relevante de estratégias que antes não existiam.

As armas que tínhamos para conhecer e tratar a doença são hoje completamente diferentes das de há 20 anos. O mesmo acontece com os métodos e tecnologias de diagnóstico, como, por exemplo, o Next Generation Sequencing (NGS). A integração, na prática clínica, de testes de diagnóstico molecular — quer de análise dos tumores para decisões terapêuticas, quer de identificação genética de populações de risco — é algo muito recente.

Depois, também integra o conceito “Beyond the Limits” tudo o que tem a ver com necessidades de suporte dos doentes, desafios de integração social, desafios financeiros para a sociedade e a crescente incidência de casos de cancro.

Por exemplo, na reunião da Sociedade Europeia de Oncologia Médica, em Berlim, há cerca de 15 dias, uma das comunicações focou-se na previsão do aumento de novos casos de cancro nos próximos 20 anos e na falta de recursos humanos para os tratar. Este é um problema real e será ainda mais relevante nos países em vias de desenvolvimento do que nos países desenvolvidos.

Mas sabemos que as nossas estruturas já estão acima da capacidade e as previsões, baseadas no prolongamento da esperança média de vida, apontam para implicações sérias no futuro.
Outro aspeto de ir “além dos limites” prende-se com desafios que a própria SPO tem enfrentado nos últimos anos.

 

Que tipo de desafios?
No ano passado, pela primeira vez, foi a própria sociedade, apenas com o apoio do seu secretariado técnico, que organizou e geriu um evento com 900 pessoas. Não houve subcontratação de empresas especializadas. Correu muitíssimo bem — foi essa a minha impressão e a de muitas pessoas que comigo partilharam essa opinião, antes e depois do evento. O Congresso decorre em Braga, mas, pela primeira vez, será feita a transmissão em direto de uma das salas do evento e, em diferido, das restantes salas para os países africanos de língua oficial portuguesa — Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique. São países onde há cancro, como em Portugal, mas onde os recursos, nomeadamente para formação, são mais limitados. Foi uma proposta do meu colega da Direção, o Dr. Ricardo Veiga, feita no início de 2024, mas, por precaução, não avançámos com este segundo desafio no Congresso do Convento de S. Francisco, no ano passado. Este ano decidimos ir mais longe – organizar o evento de novo só com os recursos da SPO e chegar à comunidade oncológica dos PALOP em real-time.

Como partilhamos a mesma língua e quase o mesmo fuso horário, é possível fazer a transmissão em tempo real. Contámos com o apoio fundamental do Professor Lúcio Lara, do IPO Porto, que tem uma relação estabelecida com estruturas nestes países, e também de outros colegas. A ideia é criar uma ligação ativa com esses países e envolver colegas locais que possam ajudar a divulgar o evento e a incentivar a participação.

 

O evento prevê três espaços diferentes: “Beyond the Limits”, “Networking” e “Zen Up”. Que papel têm estes formatos mais interativos, de socialização e científicos no contexto do congresso?
O evento é, naturalmente, científico, e o principal foco é a disseminação de informação, a partilha de resultados e a discussão de vários temas, incluindo os mais controversos. O formato é predominantemente presencial, mas, pela primeira vez, também poderá ser acompanhado remotamente.

Haverá o habitual evento social — o jantar do congresso —, mas o momento Zen será o espaço de convívio e encontro entre os participantes, nos intervalos das sessões e no final do dia.

 

O espaço “Beyond the Limits” está sobretudo relacionado com inteligência artificial. Qual a razão desta aposta?
Um dos grupos de trabalho associados à Direção da sociedade é dedicado a Dados e Análise Quantitativa em Oncologia. Hoje, a inteligência artificial está totalmente integrada nas nossas atividades. Está presente na investigação, no diagnóstico — por exemplo, na Imagiologia, onde já existem muitos algoritmos de realização e interpretação de exames com intervenção clara da IA — e até na prática clínica, através da análise de grandes volumes de dados.

Aliás, uma das iniciativas recentes da sociedade, lançada ainda  pela anterior Direção, presidida pelo Professor Miguel Abreu, foi o estabelecimento de parcerias regulares com a ASCO — a American Society of Clinical Oncology — que têm essencialmente três vertentes muito úteis.

Uma é a realização do “Best of ASCO”, uma reunião onde médicos portugueses apresentam as melhores comunicações feitas no congresso internacional da ASCO desse ano, cerca de um mês depois do evento, permitindo uma atualização rápida e acessível a quem não pode ir a Chicago – a maioria.

Outra iniciativa, infelizmente adiada este ano por incompatibilidade de calendário, é a realização de exame de autoavaliação elaborado pela ASCO dos médicos do último ano do Internato Complementar de Oncologia Médica, que lhes permite avaliar os seus conhecimentos, indicando áreas de conhecimento consolidado e áreas a necessitar de mais empenho formativo.

E a terceira é a realização de duas mesas-redondas no congresso anual da SPO com temas mais transversais — diria até filosóficos. Este ano, um tema será a liderança em Oncologia — como preparar um profissional de saúde para liderar uma equipa —, e o outro tema é sobre a aplicação da inteligência artificial à prática clínica do oncologista. Em ambas as sessões participarão oradores escolhidos pela ASCO e oradores escolhidos pela SPO. Assim, tentaremos ir “Beyond the Limits”.

 

O programa inclui temas como inovação tecnológica, novas estratégias de sobrevivência (survivorship) e multidisciplinaridade. Na prática clínica, que desafios existem hoje para implementar estas novas fronteiras?
Diria que os desafios são de dois tipos. O primeiro é que, felizmente, o número de sobreviventes de cancro é cada vez maior. Para estas pessoas desejamos que vivam uma vida normal, em quantidade e qualidade. Apesar disso, por vezes enfrentam consequências tardias dos tratamentos ou da própria doença, com impacto nas suas vidas.

Por exemplo, uma mulher tratada com quimioterapia aos 35 ou 40 anos, como consequência desse tratamento, entra em menopausa precoce. O tumor pode ter sido curado, mas as consequências permanecem. Existem, portanto, efeitos secundários e riscos pós-cancro que precisam de ser minimizados. Nos Estados Unidos, os sobreviventes representam cerca de 2% da população, e esta percentagem tende a aumentar.

O segundo desafio é que, mesmo quando não se alcança a cura da doença, conseguimos, cada vez mais, que os doentes vivam mais tempo e com melhor qualidade de vida. Isso implica maior consumo de recursos de saúde e necessidade de apoio prolongado, tanto por parte das famílias como da sociedade. Acrescem questões laborais, legais e de suporte em fases em que os sintomas interferem com a vida diária, para minimizar esses sintomas e melhorar a qualidade de vida.

Visando estas necessidades, a SPO tem dois grupos de trabalho dedicados a estas áreas: um sobre survivorship e outro sobre Cuidados Paliativos, que se complementam nas respetivas áreas de influência.

 

Os Cuidados Paliativos continuam a ser um problema em Portugal?
São um problema na medida em que a capacidade de resposta é limitada. Há muitos doentes e nem sempre é possível dar resposta em tempo útil. Mas também há dificuldades noutros pontos do sistema — por exemplo, quando não conseguimos marcar um exame de diagnóstico no tempo ideal ou iniciar um tratamento tão cedo quanto desejaríamos. São limitações do dia a dia.

 

Termina este mandato enquanto presidente da SPO em fevereiro, com o oncologista Nuno Bonito a assumir a presidência. Que iniciativas desta sua Direção considera terem tido mais impacto ou visibilidade?
Esse juízo deve ser feito por terceiros e com algum distanciamento. Ainda assim, em conjunto com os meus colegas, destaco duas iniciativas de que já falámos: a autonomia organizativa da sociedade e o reforço do apoio a grupos de trabalho por patologia dentro da SPO, reunindo profissionais interessados na investigação, diagnóstico e tratamento de áreas específicas.

O primeiro grupo integrado foi o dos tumores cutâneos, seguido do grupo de sarcomas, que já existia autonomamente como Sociedade e pediu integração como grupo de patologia dentro da SPO. Já existe também o grupo Partner, dedicado ao cancro da mama, e estão a formar-se grupos de tumores gastrointestinais e hepato-biliares. Este é um projeto que já vinha de trás e que quisemos continuar a estimular: apoiar as iniciativas de grupos de Patologia, facultando os recursos da SPO.

Outro projeto relevante, iniciado por esta Direção – veremos se será bem-sucedido -, é lutar pela inclusão da Revista Portuguesa de Oncologia no Index Medicus, atualmente Medline/Pubmed Não há atualmente nenhuma revista portuguesa de Oncologia que esteja indexada, o que limita a visibilidade internacional dos trabalhos dos nossos profissionais.

Este objetivo não é fácil, porque implica a satisfação de vários requisitos exigentes. O maior desafio é a necessidade de publicar regularmente um número mínimo de artigos originais, resultados de investigação clínica ou laboratorial. Não são artigos de opinião, de revisão ou casos clínicos. Naturalmente, os investigadores preferem publicar o seu trabalho em revistas já indexadas, do que numa revista que ainda não o está. Isto não tem uma solução simples. É um ciclo difícil de quebrar, mas temos de fazer esse caminho se queremos lá chegar.

A Direção da SPO criou incentivos para alcançar este objetivo, como prémios para o melhor trabalho original do ano e para os melhores artigos de cada número publicado, com oferta de inscrição e deslocação a uma reunião internacional em Oncologia. Facultamos também apoio editorial e estatístico para os trabalhos originais submetidos. Veremos se será estímulo suficiente.

 

Que desafios encontra para a SPO e para a Oncologia portuguesa no futuro?
O primeiro grande desafio é conseguir oferecer aos doentes um sistema de prevenção, diagnóstico e tratamento alinhado com o estado da arte. Esse é um desafio muito grande, porque teremos mais doentes com cancro, temos recursos humanos limitados e os custos em saúde são cada vez mais elevados. Por exemplo, a inovação é essencial, mas paga-se cara.

Outro desafio é garantir que os profissionais de saúde interessados em investigação tenham condições para o fazer — tempo e recursos adequados que permitam a complementaridade da investigação com a atividade clínica.
E, por último, é fundamental que a Sociedade saiba valorizar e apoiar quem quer seguir o percurso da Investigação em Saúde. Fazer investigação implica dedicação, sacrifícios pessoais e custos associados a projetos, equipamentos e meios de diagnóstico. O país precisa de ter capacidade de financiar adequadamente estas iniciativas, permitindo que as boas ideias possam ser concretizadas.

Penso que já são três desafios bastante grandes. Bem-vindos a Braga e ao CNO2025.

 

Sílvia Malheiro

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