
Especialista em Medicina Geral e Familiar e pós-graduada em Geriatria pela FMUC; Assistente Hospitalar Graduada de Medicina Interna com competência em Geriatria
A dor não tem idade
O envelhecimento populacional é um fenómeno social, que tem vindo a transformar a sociedade, quer do ponto de vista político, quer a nível das interações sociais e familiares, quer a nível da organização dos sistemas de saúde. Estima-se que o número de indivíduos com 60 anos ou mais duplique até 2050, passando de 962 milhões, em 2017, para 2,1 mil milhões em 2050.1 No caso concreto de Portugal, a população está a envelhecer a um ritmo mais acelerado do que na maioria dos restantes países europeus: enquanto que na média da União Europeia a população envelheceu 2,5 anos, em Portugal, o aumento foi de 4,7 anos de 2012 para 2022.2 Isto é explicado, em grande parte, pelo aumento da esperança média de vida, sendo que 23,4% (quase cerca de 2,5 milhões) da população portuguesa tem 65 ou mais anos.3
Cada vez mais o envelhecimento é acompanhado por anos de dependência funcional e limitação, o que condiciona uma diminuição da qualidade de vida, sendo a dor crónica um dos fatores que mais contribui para esta disfuncionalidade. Estima-se que cerca de 70% das pessoas acima dos 85 anos tenham dor crónica4, sendo a raquialgia, a gonalgia e a coxalgia as mais frequentes nesta população5. Portanto, sabemos que a população está a envelhecer e sabemos que a prevalência da dor crónica tem vindo a aumentar, principalmente nesta população, o que impõe a questão: será a dor uma inevitabilidade do envelhecimento? E se assim for, devemos aceitar como normal a presença da dor na vida dos nossos idosos?
A verdade é que temos exemplos de diferentes regiões do mundo onde as pessoas vivem vidas mais longas e saudáveis, com menos limitações e maior funcionalidade. E o segredo parece residir num conjunto de fatores comuns: dieta baseada em vegetais, atividade física diária natural e inconsciente, um forte sentido de comunidade e família, e um propósito de vida claro. Ninguém, nestas comunidades, passa horas no ginásio ou a correr maratonas. Vivem, sim, em ambientes que constantemente os obrigam a manterem-se ativos e em movimento de forma inconsciente.
Entre o acesso aos serviços e tarefas domésticas (exercício físico de baixa intensidade e grande amplitude de movimentos), não há quem sofra de sedentarismo. Com isto, melhoram também o seu equilíbrio e têm menores taxas de quedas. Parece, assim, existir evidência de que a prevenção poderá estar na base da melhoria da qualidade de vida e funcionalidade destes indivíduos, com redução da prevalência de dor crónica.
Apesar desta evidência, quando não é possível evitar a instalação da dor crónica, ignorar e normalizar a sua presença e negar o seu tratamento não é uma postura aceitável. Desconstruir preconceitos e mitos, quer no utente e familiares, quer nos próprios profissionais de saúde, é a base do sucesso do tratamento. Particularmente no idoso, a avaliação e abordagem da dor são um desafio complexo, que requerem individualização de cuidados, sendo indispensável ter em conta todas as dimensões do utente – perspetiva biopsicossocial.
A dor crónica é muitas vezes apenas a ponta do iceberg, a face visível de uma patologia escondida e desconhecida, pelo que se mostra imperativo valorizá-la e tratá-la. Nos idosos pode ser necessário dar especial importância ao tratamento não farmacológico, podendo ainda assim ser complementado com o tratamento farmacológico, sempre ajustado às necessidades e particularidades do indivíduo, nomeadamente as suas comorbilidades, terapêuticas em curso, recursos familiares e sociais, estado funcional e até mesmo preferências individuais.
O envelhecimento é mais do que um simples processo biológico, é um fenómeno construído pela sociedade e o seu significado depende do contexto social e histórico. Conhecemos cada vez melhor as causas e os mecanismos subjacentes ao envelhecimento. Conhecem-se cada vez melhor as particularidades do organismo idoso e as suas implicações na saúde e na doença.
Assim, o primeiro passo para o envelhecimento saudável e para a prevenção da dor crónica é mudar a forma como pensamos, sentimos e agimos em relação à idade e ao envelhecimento. Como mudar mentalidades é um desafio, é a criação de ambientes promotores de mudança que fará toda a diferença neste processo.
Referências:
- Nações Unidas. Centro Regional de Informação para a Europa Ocidental. Envelhecimento [Internet]. Disponível em: https://unric.org/pt/envelhecimento/
- Population structure and ageing [Internet]. Disponível em: https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=Population_structure_and_ageing&action=statexp-seat&lang=pt
- Instituto Nacional de Estatística. Censos 2021: XVI Recenseamento Geral da População; VI Recenseamento Geral da Habitação: resultados definitivos. Lisboa: INE; 2022.
- Duncan R, Francis RM, Collerton J, Davies K, Jagger C, Kingston A, et al. Prevalence of arthritis and joint pain in the oldest old: findings from the Newcastle 85+ study. Age Ageing. 2011;40(6):752-5.
- Abdulla A, Adams N, Bone M, Elliott AM, Gaffin J, Jones D, et al. Guidance on the management of pain in older people. Age Ageing. 2013;42(Suppl 1):i1-57.