Mais Médicos, Melhor Saúde? A Urgência de Reformar o Regime de Trabalho no SNS
Apesar de Portugal ter um dos maiores rácios de médicos por habitante, os problemas de acesso e a exaustão dos profissionais persistem. O verdadeiro bloqueio está na forma como o trabalho médico está organizado: um regime rígido, desajustado das necessidades do SNS e das expectativas das novas gerações. Este artigo propõe medidas para reformar o regime de trabalho médico e garantir um SNS mais sustentável, eficiente e centrado no cidadão.
Introdução
Em Portugal, o debate sobre a escassez de médicos contrasta com dados que nos colocam entre os países da OCDE com mais médicos per capita. Este paradoxo revela um problema estrutural frequentemente negligenciado: a forma como o trabalho médico está organizado.
Baseado na investigação “Determinantes do Trabalho Médico” (Almedina, 2022) (1), este artigo pretende sensibilizar os decisores políticos para a urgência de reformar o regime de trabalho médico – um eixo essencial para a sustentabilidade e resiliência do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
O Paradoxo da Escassez
Apesar do elevado rácio de médicos por mil habitantes, a perceção de escassez persiste. Tal ocorre porque os dados agregam todos os médicos licenciados, mesmo os que não exercem clínica ou não estão no SNS. Além disso, o crescente desinteresse pelas vagas em internatos e concursos no setor público deve-se, sobretudo, às condições de trabalho, não à ausência de profissionais.
As novas gerações de médicos valorizam, legitimamente, a conciliação entre vida pessoal e profissional e rejeitam jornadas desajustadas à sua qualidade de vida. Este fenómeno é agravado por um regime de trabalho médico inflexível e desatualizado face às necessidades do sistema.
Regime Atual: Desajuste e Consequências
Ao contrário de outros profissionais de saúde (enfermeiros, farmacêuticos, psicólogos, técnicos, etc.), os médicos têm horários fixos entre as 8h e as 20h, de segunda a sexta-feira. O restante período da semana (64,3%) – 108 das 168 horas – é assegurado por 18 horas semanais de cada médico que não esteja dispensado de prestar serviço de urgência, por horas extraordinárias ou por recurso ao outsourcing.
As consequências diretas são amplamente conhecidas:
- Exaustão e riscos clínicos: as jornadas de 12 ou 24 horas de trabalho consecutivas em serviços de urgência prejudicam a capacidade de decisão clínica e comprometem a segurança dos cuidados e a saúde dos profissionais.
- Ineficiência: grande parte da carga horária é consumida em atividades de urgência, prejudicando a atividade programada.
- Problemas de acesso: encerramento de serviços de urgência e a falta de médicos especialistas em várias valências e regiões do país.
- Falta de flexibilidade: a modalidade de horário de trabalho por turnos não é aplicável, o recurso ao trabalho em regime de prevenção (on-call) é residual.
Modelos Europeus: Lições a Reter
Comparando com países europeus de referência – representativos dos sistemas de saúde tipo Beveridge e Bismarck:
- França: Instituída a assistência ambulatorial não programada “Permanence Des Soins”, considerada uma missão de serviço público, organizada por médicos para responder às solicitações de cuidados fora do horário normal de trabalho. Métodos de contagem do horário de trabalho que incluem “tempo clínico registado” (39 horas semanais) e “temps texturant” (atividades adjacentes como formação, investigação, gestão), ambos com o limite máximo de 48 horas semanais por trimestre. A organização de equipas médicas por turnos é possível.
- Alemanha: Estabelecido o princípio de que o horário normal de trabalho diário não pode exceder 8 horas, mas pode ser estendido até um máximo de 10 horas se a média em três meses for de 8 horas por dia. O tempo de trabalho semanal não pode exceder uma média de 48 horas por semana dentro de um período de 12 meses. Utiliza-se cuidadosamente diversos “modelos de serviço” e “sistemas de turnos” (com turnos de 8 ou 12 horas, especialmente em unidades de cuidados intensivos) para flexibilizar a cobertura médica em diferentes períodos do dia.
- Reino Unido: As horas normais de trabalho são fixadas no contrato que geralmente inclui detalhes de quaisquer taxas de pagamento de horas extraordinárias e como são praticadas. O sistema distingue entre “resident on-call” (médico presente no local de trabalho) e “consultant on-call” (médico disponível em casa para atendimento não imediato). Além disso, os médicos podem trabalhar por turnos, com remuneração específica para os períodos noturnos ou de fim de semana (tempo premium).
Portugal destaca-se negativamente pelo modelo rígido de horário, a exclusão legal do trabalho por turnos, a escassa utilização do regime de prevenção e a manutenção das longas jornadas diárias.
Propostas Estratégicas para um SNS Sustentável
A organização da atividade médica não é uma questão de mera administração, mas uma intervenção crucial para garantir cuidados de saúde disponíveis e acessíveis. Medidas estratégicas:
- Plano Nacional de Recursos Humanos
- Planeamento plurianual ajustado às necessidades do país.
- Monitorização da capacidade formativa, do numerus clausus e das vagas para as especialidades mais carenciadas.
- Distribuição geográfica dos recursos para assegurar assistência médica em todo o país.
- Adaptação do Regime de Trabalho
- Integração plena de regimes por turnos e do modelo on-call, à semelhança dos pares europeus.
- Alinhamento com as necessidades do funcionamento contínuo dos serviços.
- Fim das Jornadas Prolongadas e da Sistematização das Horas Extraordinárias
- As práticas generalizadas de jornadas de trabalho superiores a 10 horas consecutivas violam as leis nacionais e internacionais e colocam em risco a segurança na prestação de cuidados, bem como a saúde física e mental dos profissionais.
- Cumprimento das normas legais (máximo de 48h semanais).
- Reposicionamento das horas extraordinárias como exceção.
- Promoção do Trabalho em Equipa Multidisciplinar
- Horários compatíveis entre médicos e restantes profissionais para garantir continuidade e qualidade dos cuidados de saúde.
- Sustentabilidade Económica e Eficiência Operacional
- Revisão do regime remuneratório, associada a uma análise de custo-efetividade dos novos modelos de trabalho.
- Reforço da Governação e Liderança do Sistema de Saúde
- A autonomia e flexibilidade da gestão das instituições de saúde continua a ser um propósito.
- A criação da Direção Executiva do SNS revelou-se uma resposta errada pelos encargos orçamentais e entropias que gera.
- Propõe-se a transformação da Administração Central do Sistema de Saúde numa entidade dirigida por representantes dos principais grupos de atores (profissionais, gestores, utentes e decisores políticos), com competência para normatizar, planear e avaliar o sistema como um todo – público, privado e social.
Conclusão: É Tempo de Agir
A organização do trabalho médico é um pilar estratégico da reforma do SNS e do sistema de saúde em geral. A investigação citada (1) evidencia a urgência de políticas coerentes, que garantam a segurança dos profissionais, a continuidade dos cuidados e a sustentabilidade dos recursos. Reformar o regime de trabalho médico não é uma opção técnica – é uma decisão política inadiável. Para que o SNS seja acessível, eficaz e resiliente, é tempo de agir.
Referência
- Bernardino M. Determinantes do trabalho médico: estudo de avaliação em saúde. Coimbra: Almedina; 2022.
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