Inteligência Artificial na Cardiologia Obstétrica: Um Novo Paradigma para a Deteção Precoce de Cardiomiopatias em Ambientes de Baixos Recursos
A inteligência artificial (IA) está a emergir como uma ferramenta essencial na identificação precoce de patologias cardiovasculares em populações de risco, nomeadamente em mulheres grávidas e no período pós-parto. O recente estudo clínico randomizado SPEC-AI Nigeria avaliou a eficácia de um rastreio assistido por IA na deteção de cardiomiopatias periparto, comparando-a com o modelo de cuidado obstétrico convencional em seis hospitais nigerianos.1 Com uma incidência de cardiomiopatia periparto reportada como a mais alta do mundo – aproximadamente 1 em 96 partos – a implementação de ferramentas de IA neste contexto pode representar um avanço significativo na redução da morbilidade e mortalidade materna.
O ensaio incluiu 1 232 participantes, das quais 1 195 completaram a avaliação basal. As mulheres foram distribuídas aleatoriamente entre um grupo de intervenção, que recebeu rastreio com um estetoscópio digital e eletrocardiograma (ECG) de 12 derivações guiado por IA, e um grupo de controlo, submetido ao modelo padrão de cuidados obstétricos. O desfecho primário consistiu na identificação de disfunção sistólica ventricular esquerda (LVSD), definida por fração de ejeção do ventrículo esquerdo (LVEF) inferior a 50%, confirmada por ecocardiografia. O rastreio assistido por IA demonstrou uma taxa de deteção significativamente superior ao cuidado convencional, com uma razão de probabilidade de 2,12 (IC 95% 1,05-4,27; p=0,032) quando utilizado o estetoscópio digital e de 1,75 (IC 95% 0,85-3,62; p=0,125) com o modelo de ECG de 12 derivações.
A elevada precisão diagnóstica dos algoritmos de IA, evidenciada por valores da área sob a curva de 0,976 para o estetoscópio digital e de 0,928 para o ECG de 12 derivações, sugere que estes métodos podem ser integrados na prática clínica como ferramentas de rastreio iniciais, sobretudo em ambientes de recursos limitados. Em acréscimo, o estudo demonstrou que a utilização de IA pode melhorar a estratificação de risco antes da referenciação para cardiologistas, um fator crítico num país com cerca de 450 cardiologistas para uma população superior a 213 milhões de habitantes.
O impacto clínico deste ensaio transcende a simples melhoria na deteção de LVSD. A identificação precoce de cardiomiopatia no período periparto pode traduzir-se em intervenções terapêuticas atempadas e potencialmente salvar vidas. O estudo sugere que o rastreio com IA poderá reduzir os atrasos no diagnóstico, um fator frequentemente associado a piores prognósticos maternos. Além disso, a análise revelou que a necessidade de rastrear 47 mulheres para detetar um caso adicional de LVSD compara-se favoravelmente a outros programas de rastreio obstétrico amplamente implementados, como a prevenção de pré-eclâmpsia precoce ou a identificação de depressão pós-parto.
No entanto, o estudo apresenta limitações metodológicas, incluindo um possível viés de seleção devido à inclusão exclusiva de hospitais com capacidade de ecocardiografia e o facto de a deteção de LVSD no grupo de controlo depender da avaliação clínica subjetiva dos médicos assistentes. Além disso, a taxa de mortalidade foi mais elevada no grupo de intervenção (2,0% versus 0,5%), embora a maioria dos óbitos não tenha sido de causa cardiovascular, sugerindo que a maior interação com os serviços de saúde pode ter influenciado a notificação de eventos adversos.
Os resultados deste ensaio clínico reforçam a viabilidade do rastreio de cardiomiopatias periparto com ferramentas de IA em ambientes de baixos recursos. A capacidade de realizar avaliações de risco utilizando estetoscópios digitais e ECGs com IA pode ser uma estratégia disruptiva para melhorar a saúde cardiovascular materna, colmatando lacunas na deteção precoce de disfunção ventricular. Embora sejam necessários mais estudos para avaliar o impacto destas tecnologias na mortalidade materna e infantil, a evidência até agora sugere que a IA poderá desempenhar um papel determinante na revolução da medicina obstétrica e cardio-obstétrica.
1 Adedinsewo et al. Artificial intelligence guided screening for cardiomyopathies in an obstetric population: a pragmatic randomized clinical trial. Nat Med. 2024, 2897






