Descodificar o Silêncio: Compreensão emocional em crianças não verbais
Psicóloga e Coordenadora do serviço de Psicologia da Saluslive

Descodificar o Silêncio: Compreensão emocional em crianças não verbais

Na prática clínica diária, deparamo-nos com crianças cujas limitações na comunicação verbal não diminuem a intensidade nem a complexidade das suas experiências emocionais. Seja no contexto de perturbações do neurodesenvolvimento ou em fases pré-linguísticas, a capacidade de descodificar os estados emocionais destas crianças constitui uma competência essencial para qualquer profissional de saúde.

Nestes casos, a comunicação não verbal torna-se a principal ferramenta diagnóstica e terapêutica. Observar como o corpo fala — a tensão muscular, o desvio do olhar, a alteração do tónus postural — é, muitas vezes, o ponto de partida para compreender o que a criança sente. Uma criança de dois anos pode expressar frustração através do cerrar dos punhos ou ansiedade através da rigidez corporal. Noutra situação clínica, uma criança com Perturbação do Espectro do Autismo apresentava episódios de choro “inexplicáveis” e a observação revelou que surgiam sempre após transições ambientais, traduzindo não uma alteração comportamental, mas ansiedade antecipatória face à imprevisibilidade.

As emoções, mesmo sem palavras, deixam marcas corporais e relacionais. Um comportamento autoestimulatório pode refletir desconforto ou, pelo contrário, ser uma estratégia de autorregulação. O aproximar ou afastar-se do cuidador revela perceções de segurança ou ameaça. Compreender estas nuances requer tempo, disponibilidade emocional e uma escuta atenta do que não é dito.

A leitura emocional destas crianças deve ser feita num quadro contextual e interdisciplinar. As emoções não emergem no vazio: compreender o que aconteceu antes de uma reação, quem estava presente e quais os estímulos sensoriais dominantes permite formular hipóteses fundamentadas. Esta anamnese comportamental substitui, em muitos aspetos, o relato verbal que estas crianças não conseguem fornecer.

Importa também reconhecer que a nossa própria resposta emocional é um dado clínico. A contratransferência — aquilo que a criança nos faz sentir — pode espelhar o seu estado interno. Uma sensação persistente de confusão, por exemplo, pode refletir a sua própria dificuldade em organizar o mundo emocional.

Compreender as emoções de uma criança não verbal exige uma presença emocional regulada. Um corpo tranquilo, uma voz modulada e uma expressão coerente são instrumentos terapêuticos que transmitem segurança. Como costumo dizer em consulta: “Mesmo sem falar, comunica — só precisamos aprender a escutar de outra forma.”

Esta compreensão não é apenas um objetivo clínico, mas um ato ético. A ausência de fala não significa ausência de linguagem, pensamento, afeto ou sofrimento. Compreender é cuidar — e cuidar, neste contexto, é traduzir o invisível em presença, atenção e vínculo.

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