Especialista em Medicina Geral e Familiar; Mestre em Evidência e Decisão em Saúde; Coordenador do Grupo de Estudos de Dor da APMGF.
A COMUNICAÇÃO DE UM EXORCISMO: Et tu, Brute?
Nem homem nem nação podem existir sem uma ideia sublime.
Fiodor Dostoievski
Sublimar: 1. Tornar ou tornar-se sublime; 2. Fazer passar ou passar diretamente do estado sólido ao gasoso; purificar, expurgar de tudo o que é estranho ou impuro.
Nos idos de março, Júlio César foi atacado e morto por um grupo de senadores que incluía Marcus Junius Brutus, seu protegido. Este momento foi eternizado pela frase “Até tu, Brutus?” da peça de William Shakespeare.
Atravessamos, hoje, um momento único para a comunicação em saúde seja entre pares ou para as massas. O fenómeno pandémico acendeu um rastilho de unmet needs que foram colmatadas sob pressão e com fases e motivações claramente distintas.
No que diz respeito às fases, há claramente uma primeira fase de informação que foi muito semelhante às sirenes dos raids aéreos da segunda guerra mundial. Uma fase de pânico e proteção das massas com uma chamada às armas e uma linguagem militarista – “as trincheiras”, “a guerra”, “o inimigo”.
A seguir, esta fase foi-se diluindo num anticlímax porque a destruição gerada, embora brutal, foi menor do que a que muitos anunciaram.
E é aqui que se cria o primeiro demónio, como se estivéssemos a percorrer os círculos de Dante e encontrássemos um dos Malebranche.
Exorcizar: 1. Pronunciar exorcismos para expulsar demónios ou espíritos do corpo de; 2. Bradar como quem esconjura.
Quanto às motivações, elas foram, inicialmente, puras e simples – salvar o maior número de pessoas do “inimigo desconhecido”. Mas, o sumo da laranja passou de doce a acre. As motivações passaram de uma sublimação da natureza humana ao que tem de mais rico – a preocupação com próximo – para uma contagem de seguidores, gostos, partilhas e retweets.
E este é o momento em que criamos o segundo demónio, um “Imperador do Reino Doloroso” no nono círculo de Dante.
A responsabilidade daquilo que comunicamos, principalmente para as massas, foi menorizada, demasiadas vezes, por vaidades, interesses económicos ou pura irresponsabilidade. Escrevia-se no The Guardian, há poucos dias, que a maioria da desinformação relativa à pandemia é da responsabilidade de apenas 12 pessoas a nível global.
E agora? Agora temos dois demónios, pelo menos, para exorcizar. E se já é mau termos demónios em terreno aberto, pior ainda será tê-los em terreno “sagrado”, o daqueles que têm que defender a evidência, a sensatez, a tolerância – a dúvida científica.
Acreditar na evidência, para um médico, para um investigador, para alguém que pensa a saúde e a ciência como um meio de sublimação da existência humana, não é adequar os dados às nossas convicções. É duvidar, questionar os dados, discutir e aprender com os pares e com as massas. É, acima de tudo, dizer a verdade.
E muitas vezes, a verdade é que não sabemos, não temos certezas, não podemos dar garantias absolutas.
Acreditar na ciência não é, de certeza, traçar cenários apocalípticos, definir verdades absolutas que quase nunca existem ou transformar discussões científicas em ataques pessoais.
É preciso pensar a comunicação em ciência.
É preciso exorcizar estes demónios. Definitivamente. E, depois, talvez consigamos a tal ideia sublime.