Miocardiopatia Amiloide por Transtirretina. “Os sintomas e sinais exigem vigilância redobrada”
A Miocardiopatia Amiloide por Transtirretina é uma doença rara, cujos sintomas são semelhantes a patologias cardíacas mais comuns. Face a esta complexidade, o diagnóstico é multifacetado, como explica Dulce Brito, cardiologista e membro do Conselho Técnico-Científico da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca (AADIC). A especialista também fala sobre o manual lançado a pensar nos doentes.

Como se caracteriza a Miocardiopatia Amiloide por Transtirretina?
A ATTR-CM, ou Miocardiopatia Amiloide por Transtirretina, é uma doença cardíaca considerada rara, causada pela acumulação de proteínas amiloides no organismo, especialmente no coração. Por ser grave, a esperança média de vida após o diagnóstico é de apenas três a quatro anos. Pode ter origem hereditária ou surgir associada ao envelhecimento (forma wild type), sem causa genética conhecida. Um diagnóstico em fase inicial e o tratamento dirigido, em conjunto com um suporte social adequado, podem fazer a diferença no controlo da progressão da doença e no prolongamento de uma sobrevida com qualidade.
Quem é mais afetado?
A forma hereditária tende a manifestar-se mais cedo, entre os 50 e os 60 anos, e distribui-se de forma equitativa entre homens e mulheres. Caracteriza-se pela coexistência de insuficiência cardíaca, sintomas que afetam o sistema nervoso e/ou o aparelho digestivo, e há frequentemente um historial de síndrome do túnel cárpico (que pode ser bilateral). Já o risco de desenvolver a ATTR-CM wild type é mais elevador em homens caucasianos com idade superior a 60 anos. O envolvimento cardíaco é predominante, sendo a insuficiência cardíaca a manifestação mais frequente, bem como outras manifestações cardíacas como fibrilhação auricular, bloqueios de condução ou outras arritmias e, também um passado de síndrome do túnel cárpico bilateral.
“O tratamento da Miocardiopatia Amiloide por Transtirretina (ATTR-CM) é sempre individualizado e assenta em dois pilares: o tratamento de suporte e a terapia específica”
O que é mais desafiante no diagnóstico e no tratamento?
O processo de diagnóstico da ATTR-CM é multifacetado e envolve uma combinação rigorosa de exames clínicos (sangue e urina) e imagiológicos especializados (ecocardiograma, eletrocardiograma, ressonância magnética cardíaca, cintigrafia óssea), complementados por teste genético ou, em alguns casos, por biópsia, idealmente cardíaca. Os exames iniciais são pedidos pelo médico quando a suspeita clínica surge, outros terão que ser equacionados já em centros especializados.
No entanto, o mais profundo desafio reside na vertente emocional. Receber o diagnóstico de uma patologia que acarreta uma esperança média de vida curta, tem um impacto psicológico avassalador. Lidar com esta situação implica enfrentar uma carga emocional intensa, marcada por sentimentos de luto, medo, incerteza e ansiedade perante o futuro, o que torna a gestão diária da doença extremamente difícil. Perante esta realidade, evitar o isolamento é fundamental. O suporte incondicional de familiares, amigos, grupos de apoio constituídos por pessoas que partilham a mesma situação clínica (outros doentes) e a orientação contínua das equipas de saúde, são absolutamente vitais para o bem-estar emocional e para fornecer a estrutura necessária para enfrentar a patologia.
Sendo uma doença que se pode confundir com outras patologias cardíacas, a que deve estar mais atento o médico de família, que costuma ser a primeira “frente” no sistema de saúde?
Devido à semelhança com patologias cardíacas comuns, os sintomas e sinais de ATTR-CM exigem vigilância redobrada. É necessário atentar a manifestações como fadiga, arritmias, diminuição da pressão arterial em doentes previamente hipertensos (e que deixam de necessitar dos medicamentos hipotensores que tomavam), edemas nos membros ou abdómen, nictúria, tonturas, episódios de síncope e anorexia. Além destes, a doença pode apresentar um conjunto de indicadores menos óbvios, mas igualmente relevantes: anomalias oculares (com alterações visuais), rotura espontânea do tendão do bicípede, disfunção gastrointestinal (diarreia, obstipação), necessidade de substituição articular (anca/joelho), bem como sintomas neurológicos (neuropatia) como dormência, formigueiro ou dor nas extremidades (mãos, pés e dedos), e dor lombar ou nas pernas.
“Este guia é uma ferramenta essencial e prática destinada a doentes com ATTR-CM e seus cuidadores. Foi criado para colmatar a lacuna de informação e facilitar a gestão desta doença progressiva”
Qual é o tratamento mais adequado? Tem havido progressos neste âmbito?
O tratamento da Miocardiopatia Amiloide por Transtirretina (ATTR-CM) é sempre individualizado e assenta em dois pilares: o tratamento de suporte e a terapia específica. O tratamento de suporte foca-se na gestão dos sintomas da insuficiência cardíaca (como a retenção de líquidos e falta de ar, geralmente com diuréticos) e no controlo de arritmias, sendo crucial sublinhar que o recurso a medicamentos cardíacos convencionais requer prudência. Contudo, o grande avanço reside nas terapias modificadoras da doença, cujo objetivo é intervir na origem do problema, impedindo a formação e deposição da proteína amiloide.
Nesta área têm sido registados progressos terapêuticos muito significativos que alteram a história natural da doença, reduzindo a mortalidade e as hospitalizações e melhorando a capacidade funcional e a qualidade de vida. Com estas terapêuticas inovadoras e o diagnóstico precoce, a ATTR-CM, que anteriormente apresentava opções limitadas, entra numa nova era terapêutica que permite uma gestão muito mais promissora da doença e, consequentemente, o aumento da sobrevida com melhor qualidade.
A World Heart Federation lançou o livro/agenda “Viver com Miocardiopatia Amiloide por Transtirretina: Um guia para doentes”. De que forma esta ferramenta poderá ser uma mais-valia para os doentes e familiares?
Sabemos que informação é poder e que a posse de informação fidedigna e acessível é fundamental para que o doente consiga gerir a sua condição de forma proativa e tomar decisões informadas. Organizações como a AADIC – Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca a nível nacional, ou a World Heart Federation, internacionalmente, prestam um suporte inestimável: disponibilizam aconselhamento, recursos científicos validados e fomentam a ligação entre pessoas com a mesma experiência. Um exemplo prático deste apoio é o novo manual “Viver com Miocardiopatia Amiloide por Transtirretina: um guia para doentes”, da iniciativa da World Heart Federation e do qual sou coautora.
Este guia é uma ferramenta essencial e prática destinada a doentes com ATTR-CM e seus cuidadores. Foi criado para colmatar a lacuna de informação e facilitar a gestão desta doença progressiva. Mais do que um guia informativo, é um toolkit de empoderamento que inclui um diferencial de instrumentos de monitorização e registo (como rastreadores de sintomas e medicamentos) e um diário que facilita a organização e o controlo ativos dos utilizadores sobre a sua saúde. O conteúdo abrange desde a compreensão detalhada da ATTR-CM e o aconselhamento genético, até à gestão prática do estilo de vida (dieta e exercício) e o crucial apoio à saúde mental. Sem dúvida uma ferramenta útil com aplicação direta no aperfeiçoamento da comunicação com a equipa médica e na qualidade de vida diária.
Maria João Garcia
Artigo relacionado
What´s new in myocarditis and pericarditis field?












