Técnicos Auxiliares de Saúde. O País onde os Decretos-Lei têm formas distintas de intepretação normativas
Afinal, o que mudou com a criação da nova categoria e carreira de Técnico Auxiliar de Saúde, através do Decreto-Lei n.º 120/2023, de 22 de dezembro, promulgado pelo Presidente da República? Como se costuma dizer, afinal não mudou nada. Aliás, até piorou: apenas mudou o nome, porque continuam a existir as mesmas funções que se desempenhavam antes desta situação. Continuamos a ser os “Outros”, os “Parentes Pobres da Saúde”, os “Invisíveis Indispensáveis”, os “Limpas Cus”.
A transição destes profissionais — e o respetivo processo — foi um autêntico desastre. A maioria das 39 ULS transitou motoristas, telefonistas, funcionários da logística, dos serviços de instalações e equipamentos, das farmácias e laboratórios, entre outros. Ora, nada disso deveria ter acontecido. A transição destinava-se apenas a quem tivesse formação, qualificação e certificação como Técnico Auxiliar de Saúde, e que estivesse em contacto direto com o doente.
O foco destes profissionais deveria ser o doente, mas, na prática, o foco são as limpezas, os recados, fazer a cama dos médicos e limpar os gabinetes das chefias. Será normal que, em muitas ULS, nos turnos da tarde e da noite, esteja apenas um Técnico Auxiliar de Saúde para 40 doentes, sem rácios definidos, sem código deontológico, e trabalhando com dados pessoais e clínicos dos doentes? Muitas vezes, somos os primeiros a chegar junto deles, ouvindo confidências sobre a vida pessoal de cada um.
Não sou contra o sindicalismo — foram os sindicatos que estiveram nas negociações com o Governo da altura —, mas, em Portugal e no sul da Europa, os sindicatos não são profissionalizados, ao contrário do que acontece na Europa do Norte, onde até existem licenciaturas em sindicalismo. Como pode um dirigente sindical representar verdadeiramente uma classe se pertence à comissão política de um partido?
A conclusão é simples: em Portugal, os sindicatos são satélites dos partidos políticos, com as suas respetivas agendas. O resultado foi que, nas negociações com o Governo, foram enviadas pessoas que nunca trabalharam na área da saúde ou nos cuidados aos doentes. Eis um facto: em Portugal existem 270 sindicatos; na Alemanha existem 70, todos profissionalizados.
Conclusão: à 25.ª hora, tudo foi alterado em relação ao anteprojeto de maio de 2023, que estava muito mais adequado à realidade.
Requisitos para transitar para a carreira especial de Técnico Auxiliar de Saúde
Transitam para a carreira especial de Técnico Auxiliar de Saúde os trabalhadores que, cumulativamente, reúnam os seguintes requisitos:
1. Estejam integrados, à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 120/2023, de 22 de dezembro, na carreira geral de assistente operacional, e exerçam funções na área da prestação de cuidados de saúde.
De acordo com a parte preambular do diploma, consideram-se funções “na área da prestação de cuidados de saúde” aquelas que aproximam os trabalhadores dos doentes e os distinguem dos demais assistentes operacionais, designadamente: “atividades e tarefas que apoiam outros profissionais de saúde na prestação de cuidados diretos ao doente, nomeadamente no que respeita à sua higiene e alimentação e na preparação para intervenções cirúrgicas.”
Estes profissionais integram equipas multidisciplinares em diversos contextos dos serviços e estabelecimentos de saúde — urgências, internamentos, blocos operatórios, serviços de esterilização —, assumindo um papel indispensável no resultado final dos atos de saúde.
Ora, foi precisamente esta situação que deu origem a uma auditoria/inspeção por parte da IGAS – Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, que, contudo, não adotou um modus operandi eficaz, pois não foi ao terreno verificar se o decreto-lei estava a ser cumprido na íntegra. Mais grave ainda: o relatório final referia que as 39 ULS seriam alvo de inspeção, mas apenas 11 foram efetivamente auditadas.
Segundo a IGAS:
“Analisado o processo de implementação da nova carreira no total das 39 Unidades Locais de Saúde, das quais foi constituída uma amostra de 11 entidades para análise detalhada, concluiu-se que, apesar do incumprimento do prazo e de um caso de violação de disposições do Código do Procedimento Administrativo, todas as entidades cumpriram o diploma. Contudo, resultaram interpretações distintas das normas legais, particularmente em departamentos e serviços integrados em áreas de apoio à prestação de cuidados.”
Então, um decreto-lei pode ser sujeito a interpretações distintas das normas legais? E como pode uma instituição inspetiva do Estado depender diretamente da tutela do Ministério da Saúde, neste caso a IGAS?
Petição Pública
Neste contexto, foi criada uma petição pública, no exercício de um direito cívico e constitucional, para que o Decreto-Lei n.º 120/2023, de 22 de dezembro, volte ao Parlamento e seja devidamente alterado em vários pontos. Já existe apoio de grupos parlamentares, e o assunto será também analisado pela 9.ª Comissão de Saúde da Assembleia da República.
Propostas de alteração ao Decreto-Lei n.º 120/2023
Ponto 1 – A carreira não pode ser considerada de grau de complexidade 1 (equivalente ao 9.º ano), como consta do decreto, mas sim de grau 2, uma vez que o exercício da profissão exige conhecimentos teóricos e práticos complexos e de elevada responsabilidade. Se é exigido o 12.º ano para a obtenção da formação de Técnico Auxiliar de Saúde, não faz sentido permitir o ingresso apenas com o 9.º.
Ponto 2 – A carreira deve estar enquadrada num modelo hierárquico, com representação assegurada por um Técnico Auxiliar de Saúde Coordenador, garantindo representação efetiva junto dos conselhos de administração.
Ponto 3 – A tabela remuneratória deve refletir a exigência e responsabilidade da profissão, valorizando quem nela trabalha e permitindo a fixação de profissionais.
Ponto 4 – A profissão deve ser considerada de risco, desgaste rápido e insalubridade.
Ponto 5 – Deve ser criado um código deontológico, dado que os profissionais lidam diariamente com pessoas e dados pessoais e clínicos dos utentes.
Ponto 6 – Só devem ingressar na carreira profissionais com formação e certificação em Técnico Auxiliar de Saúde e com o 12.º ano de escolaridade.
Quem já exerce funções nesta área deve realizar um processo de RVCC – Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, previsto na Portaria n.º 61/2022, de 31 de janeiro.
Apela-se à assinatura da petição pública por todos os profissionais deste grupo, bem como pela sociedade civil, dado o impacto negativo que esta situação tem na prestação de cuidados de saúde diários, seja no SNS, no setor privado ou social.
Em jeito de conclusão, e como venho dizendo há muitos anos: Portugal não é um país, é um sítio — e, ainda por cima, muito mal frequentado.
Disse.
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