O SNS está em risco de ficar uma sombra do que já foi
Diretor do Serviço de Medicina do CHUP; Presidente Cessante da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

O SNS está em risco de ficar uma sombra do que já foi

Ainda estamos no calor das eleições para os novos dirigentes da Ordem dos Médicos. Muitos e bons candidatos, asseguram-nos que os médicos ficarão bem representados. Demorei-me a ouvir as suas propostas e reflexões, ciente do valor que têm as opiniões destas pessoas, que muito devem ter pensado na forma de melhorar a saúde em Portugal. Em todos eles, encontrei duas ideias prioritárias comuns: o risco de virmos a ter um SNS dos pobres e a necessidade imperiosa de revitalizar as Carreiras Médicas.

O SNS está em risco de ficar uma sombra do que já foi. Sou filho e neto de Médicos da Província e testemunhei a extraordinária mudança na prestação dos Cuidados de Saúde à população, depois de António Arnault ter feito aprovar o seu sonho na Assembleia da República.

O SNS é a maior conquista do 25 de Abril sentida pelas pessoas e é a única coisa em que Portugal era apontado como exemplo no mundo, ocupando um dos lugares cimeiros nos Sistemas de Saúde mais eficientes e universais. Seria indesculpável desbaratarmos este legado, deixando as gerações futuras à mercê dos ditames da sua capacidade financeira para se tratarem com qualidade e segurança. Seria um recuo civilizacional!

Uma das mais sérias ameaças ao nosso SNS é a fuga progressiva para o setor privado dos profissionais mais qualificados, acompanhados pelos doentes que julgam poder pagar, porque pertencem a um subsistema de saúde ou têm um seguro. Assistimos ao crescimento desmesurado de hospitais privados em todo o País, sem qualquer controle baseado nas necessidades locais, deixando ao livre-arbítrio das leis do mercado um negócio tão apetecível como a saúde.

Nem sequer se exigiu que tivessem um quadro médico próprio e os médicos de muitos hospitais privados repartem o seu tempo com o hospital público, num vai-e-vem de aparência promíscua, mas que ninguém parece querer acabar. Gostamos tanto de ir buscar os exemplos da Europa, mas recusamo-nos a ver que, no grupo de Países a que queremos pertencer, o médico ou trabalha no setor público ou no setor privado, resguardando-se de quaisquer confusões.

Por outro lado, é preciso assumir duma vez por todas aquilo que queremos de cada um dos setores. Todos estamos de acordo que a saúde dos Portugueses precisa de Hospitais Públicos e de Hospitais Privados. Mas, a medicina privada deverá ser supletiva dos cuidados globais assegurados pelo SNS, com maior tendência ao fornecimento de meios complementares de diagnóstico ou atos médicos isolados, em que até será mais eficiente, ou pretende-se que haja uma competição aberta entre Hospitais Públicos e Privados, todos a fazerem as mesmas coisas?

Não nos esqueçamos que os Cuidados de Saúde universais e tendencialmente gratuitos é um direito consagrado na Constituição, mas também é a ideia basilar da criação do SNS. Quando se diz que 3,5 milhões de Portugueses têm um seguro de saúde é preciso olhar para as coberturas. É verdade que no Hospital Privado o doente grave e complexo pode ser tratado com qualidade e competência. Mas, a permanência desse doente está sujeita ao budget do seu seguro e, quando é ultrapassado, resta a transferência salvadora para o Hospital Público.

A gestão dos Hospitais Públicos e Privados deve assemelhar-se na eficiência e na minimização do desperdício. No entanto, os objetivos serão sempre diferentes: na empresa privada, o objetivo é o lucro, enquanto na pública se busca suprir as necessidades em saúde da população numa lógica de prestação de um serviço público.

As Carreiras Médicas são fundamentais para conseguir a fixação de Médicos no SNS. Quando foram criadas nos anos 80, tornaram-se um fator de atração dos médicos para optarem pelo SNS. Era uma carreira médica evolutiva e previsível, que permitia ponderar resistir ao eventual benefício económico da privada.

Há muitos anos, que os graus da carreira médica foram sendo desrespeitados. No meu caso, só tive oportunidade para concorrer a Assistente Graduado Sénior 14 anos depois de reunir as condições necessárias para o concurso. E, apesar de finalmente ter conseguido esse lugar de topo na carreira, ganho menos do que há 10 anos.

Os Hospitais e os seus Serviços são organizações muito complexas. A hierarquia é fundamental para que o funcionamento seja harmónico e que cada um cumpra as suas funções o melhor que pode e sabe. Confiar que se é reconhecido, com a valorização num grau superior da carreira, é uma motivação extraordinária. Mesmo quando o trabalho é demasiado, estar motivado e saber que o que fazemos é uma mais-valia para o nosso doente faz-nos resistir melhor ao burnout. Estou mesmo convencido que um Médico feliz cuida melhor do seu doente!

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