“Teste em casa” do VIH arranca em janeiro

Associação Abraço lança um projeto pioneiro de rastreio da infeção por VIH, em que as colheitas das amostras serão realizadas em casa e as análises efetuadas pelo INSA - Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge.

Em entrevista ao SaúdeOnline, Gonçalo Lobo, presidente da Associação Abraço, fala da realidade nacional e dos projetos que irá implementar em breve. Em janeiro, um projeto pioneiro de rastreio da infeção por VIH verá a luz do dia. As colheitas das amostras serão realizadas em casa, pelos interessados, e as análises efetuadas pelo INSA – Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. Nas situações em que o teste é reativo, a pessoa receberá a informação presencialmente, dos técnicos da associação, e será encaminhada para os serviços de saúde.

SaúdeOnline | Mais de três décadas depois de terem sido detetados por cá os primeiros casos de infeção por VIH, Portugal continua a fazer “má figura” quando comparado com os demais países da Europa Ocidental em termos de incidência e prevalência da infeção. Há alguma singularidade lusa que explique o fenómeno?

Gonçalo Lobo | Existem alguns fatores que contribuem, de facto, para a má estatística portuguesa relativamente à infeção pelo VIH. Desde logo o problema da “limpeza” que ainda está por fazer relativamente aos óbitos. Ainda há dias veio a público a notícia de que alguns milhares de doentes não estavam no sistema. Ora, o que acontece é que muitos desses doentes já faleceram, pelo que não estão – nem podiam estar – a fazer tratamento antirretroviral. Outros migraram e também não foram expurgados das listas. Acredito que no dia em que as “listas” de casos registados em Portugal forem expurgadas dos óbitos e da população migrante, os números portugueses não serão muito diferentes dos registados nos demais países comparáveis.

Gonçalo Lobo

SO | O que é que está a falhar?

GL | Quando falamos de infeções sexualmente transmissíveis, falamos de vivência da sexualidade, um tema que ainda é tabu entre nós, apesar dos grandes avanços registados nestas últimas décadas. Há muito pouca intervenção, até do ponto de vista emocional, relativamente à vivência da sexualidade. Incidimos muito sobre a doença em si e muito pouco sobre a envolvente sexual. É assim, apesar das melhorias que se têm vindo a registar Aliás, ainda nos chegam homens que são homossexuais mas que retraem a sua sexualidade. Não digo que seja o padrão de comportamento em Lisboa ou no Porto, mas é um problema ainda muito presente nos meios mais pequenos e no interior do país, assim como nas Regiões Autónomas.

Isto faz com que as pessoas vivam a sua sexualidade à margem… o que tem sempre implícito um contexto de risco. Isso, associado ao consumo de drogas e a outros fatores, até de ordem pessoal, contribui para que tenhamos um nível maior de infeção.

SO | Hoje em dia o acesso à medicação é, de facto, universal?

GL | É! É claro que, volta e meia, temos caos de hospitais que não cumprem com a dispensa de medicação para 90 dias, mas são casos isolados e assim que identificamos o problema, a situação é resolvida rapidamente.

SO| O que também mudou foi a tutela, com a extinção da comissão Nacional de Luta Contra a SIDA, substituída por um Programa Nacional para a prevenção do VIH/SIDA, sob tutela da Direção-Geral da Saúde. Concorda com o novo modelo de gestão?

GL | Confesso que me custa a aceitar como viável termos três programas liderados pela mesma pessoa, com a mesma equipa e uma redução drástica do financiamento. Historicamente, começámos com uma Comissão, que depois foi transformada em coordenação e que agora é mais um – entre muitos – programa nacional, que apesar da escassez de recursos abrange, para além da infeção por VIH, as hepatites virais e a tuberculose.

SO | Têm-se registado cortes significativos no investimento na luta contra a SIDA?

GL | Temos assistido a cortes drásticos. Há dez anos tínhamos 3,5 milhões de euros. Hoje em dia não temos nem um terço desse valor… É também por isso que não podemos olhar com bons olhos a integração do VIH como programa prioritário de saúde na DGS, uma vez que essa integração não só não veio trazer os recursos necessários ao combate à infeção, como também não veio permitir um trabalho mais articulado com a sociedade civil. Por outro lado, assistimos a um estrangulamento dos recursos, porque a atual diretora do programa e a sua equipa têm que assegurar, para além do combate ao VIH, as hepatites virais e a tuberculose. Três infeções que constituem outros tantos gravíssimos problemas de saúde pública geridos por uma equipa com recursos demasiado limitados para garantir um bom trabalho.

SO | Considera, pois, que a integração da Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA na DGS foi um erro?

GL | Sem dúvida!

SO | Há dias foi apresentado um estudo que mostra que, em 2037, mais de 80% dos infetados com VIH terão 50 ou mais anos de idade. Do que vê no terreno, considera que o país está preparado para enfrentar esta nova realidade?

GL | Os hospitais já se começaram a preparar para esta nova realidade, que nos últimos anos tem sido, aliás, alvo de discussões a nível internacional. Relativamente a alguns dos riscos acrescidos que o estudo revela, eles já eram conhecidos, designadamente no que respeita à diabetes, às doenças neurodegenerativas, cardiovasculares, entre outras. É bom saber que em Portugal já começámos a “fazer o trabalho de casa”, preparando-nos para enfrentar os novos desafios que irão colocar-se no médio prazo. Infelizmente, são ainda poucas as unidades que efetivamente fazem este trabalho.

SO | Portugal comprometeu-se com a OMS a cumprir a meta 90-90-90 até 2020, o que implica ter nesse horizonte temporal 90% da população infetada diagnosticada, 90% em tratamento com antirretrovirais e destes, 90% sem virémia. Acredita que é possível?

GL | Se Portugal não apostar fortemente na ligação aos cuidados de saúde e na retenção nos cuidados de saúde, a probabilidade de falharmos o segundo e o terceiro 90 é grande. O primeiro já foi atingido…

SO | Estamos assim tão mal?

GL | Ainda é muito frequente termos pessoas rastreadas para a infeção a não chegarem aos hospitais, ou seja, depois de rastreadas não vão à primeira consulta de infeciologia. E sem estes primeiros passos não têm acesso aos medicamentos. Além disso, também temos situações de dropout das consultas; pessoas que a dada altura deixam de ir às consultas.

SO | É uma situação muito frequente?  

GL | Em termos nacionais, não lhe sei dizer. Mas há situações preocupantes. Aqui há dias, o Dr. José Poças, Diretor do Serviço de Doenças infeciosas do Centro Hospitalar de Setúbal, revelou que no seu serviço, após um ano, 40% dos doentes tinha feito dropout. O que é imenso e necessita de ser estudado.

SO | Que outros obstáculos poderão impedir Portugal de atingir a meta a que se comprometeu com a OMS?

GL | O preconceito!

SO | Ainda existe?

GL | Existe, assim como o estigma. O que deixou de existir foi a discriminação. Preconceitos, todos nós temos. Quando é negativo, depreciativo, torna-se estigma, algo que também todos fazemos, mesmo que inconscientemente. Discriminação não há, porque hoje somos uma sociedade muito mais “polida” do que há alguns anos atrás, que não deixa transparecer determinados tópicos.

SO | A Abraço tem em mãos um conjunto de projetos para o curto/médio prazo. Do que se trata?

São quatro projetos, que iremos desenvolver nos próximos tempos. O primeiro é dirigido a crianças de países africanos de língua portuguesa (PALOP) e alicerça-se em dois apartamentos de tipologia T1 que a Abraço possui, e que vão servir para receber crianças dos PALOP que necessitem de fazer tratamentos em Portugal. Já articulámos com a Direção-Geral da Saúde e vamos agora começar a articular com as embaixadas que têm esta convenção com Portugal. Contamos receber as primeiras crianças e respetivas famílias em janeiro.

SO | Qual o valor acrescentado deste projeto? Já existem algumas respostas…

GL | É verdade, vêm crianças para Portugal, mas as respostas que existem são por vezes limitativas.

SO | Como assim?

GL | Por exemplo, há serviços em que apenas permitem que seja a mãe a acompanhar a criança. Tivemos o caso de uma criança que, como vinha com o pai, não foi possível encontrar resposta. Temos também situações em que a pessoa que vem com a criança também necessita de cuidados médicos, pelo que é necessário trazer um terceiro elemento. Ora, habitualmente isto também não é possível. O nosso projeto pretende assim dar resposta a estas situações. Por último, existe a possibilidade de, após a sua chegada a Portugal, verificar-se que o tratamento disponível no país não é o adequado ao caso concreto, o que levará a que a criança seja transferida para um país onde esse tratamento esteja disponível, ao abrigo do protocolo português.

SO | Nestes casos há situações de dropout?

GL | Há. Pessoas que vêm ao abrigo do programa e que depois decidem viajar para outro país da Europa e aí prosseguirem a sua vida.

SO | O segundo projeto que vão implementar em breve também é dirigido a crianças…

GL | É a “Abracinho, que vai surgir de um equipamento social que já existia, um jardim infantil. Agora que os jardins infantis foram integrados no primeiro ciclo de escolaridade, vai ser reestruturado para funcionar como creche. A Câmara Municipal de Lisboa lançou-nos o desafio de ficarmos a gerir o equipamento, o que aceitámos de imediato dada a grande proximidade que temos com o bairro, onde estamos há já 17 anos.

SO | Quantas crianças irão receber?

GL | Cerca de 40, dos 0 aos 36 meses de idade.

SO | Ainda existem dificuldades na integração de crianças infetadas nos estabelecimentos de ensino?

GL | Não existe exclusão, mas uma dificuldade de manejo destas situações nos equipamentos sociais.

SO | Em que sentido?

GL | Por exemplo, se há uma criança infetada pelo VIH, a quem é que os pais devem contar? Deverá toda a comunidade escolar ser informada ou apenas os técnicos que lidam com a criança e que necessitam, objetivamente, dessa informação? A educadora que está com a criança deve saber, até para poder dar resposta a qualquer situação que surja. Tal como acontece relativamente a crianças com diabetes ou celíacas. Pensamos que também a coordenadora pedagógica deverá saber, para que possa auxiliar a educadora nas tomadas de decisão. Contamos avançar em setembro de 2018, depois de concluídas as obras de remodelação.

SO | Projeto “teste em casa”… Do que se trata?

GL | Chama-se mesmo assim: “teste em Casa”. As pessoas interessadas vão poder solicitar, sem custos, a partir da primeira quinzena de janeiro, o envio pelo correio de um kit de recolha de amostras – muito semelhante ao “teste do pezinho” – para posterior realização de teste de despiste do VIH. O kit contém três lancetas, para a pessoa se picar, de modo a recolher o sangue e depositá-lo em espaços próprios para o efeito no kit. Dispõe ainda de um penso, para colocar sobre o local da picada, e uma toalhita desinfetante.

SO | É anónimo?

GL | Sim. Apenas questionamos, por imperativo legal, se tem mais de 18 anos e solicitamos a morada para envio do kit, bem como um endereço de email para envio de informação. Os testes serão analisados no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, em Lisboa. Depois de completado o processo, o kit é enviado, sem custos, para o INSA, onde serão realizados os testes. Uma vez realizados, os técnicos do INSA carregam os resultados na base de dados da Abraço e é emitida, automaticamente, uma notificação para a pessoa informando que o resultado está disponível, e que pode consultá-lo na plataforma.

SO | E se o resultado for positivo?

GL | Se for negativo, enviamos uma mensagem informando que o teste foi não reativo, sendo a pessoa reencaminhada para uma página dedicada à prevenção da infeção por VIH. Quando o teste é reativo, os técnicos da Abraço entram em contacto com a pessoa, agendam um atendimento pessoal, no decurso do qual informam sobre a seropositividade para o VIH detetada nas análises. Nesta situação, quebramos a confidencialidade e o anonimato de modo a podermos fazer a ligação aos cuidados de saúde.

SO | Pensam alargar o âmbito do rastreio a outras DST?

GL | Sim. Apesar de começarmos pela infeção por VIH, o nosso objetivo é avançar para as hepatites virais, sífilis e gonorreia. O procedimento é o mesmo.

MMM

 

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