“Há um cansaço generalizado e menos voluntarismo de outras especialidades”

No último dia a fazer urgência, depois de dez anos a chefiar a equipa do Santo António, o presidente da SPMI critica também a "misturada que existe em Portugal, em que os médicos saltitam entre o público e o privado".

Espera um grande aumento do número de casos e internamentos em janeiro?

Eu sou um otimista. Não acredito numa terceira vaga. O governo fez bem em relação às restrições das festas de fim de ano. No Natal, penso que houve uma grande contenção. Independentemente da esperança trazida pela vacina, temos de manter todos os cuidados para que os números não fiquem incontroláveis e não coloquem em causa a capacidade do SNS.

Em relação aos internamentos, o sistema funcionou muito bem. Tivemos cerca de 3 mil internados em enfermaria e cerca de 500 em UCI. Temos uma capacidade instalada em UCI de cerca de 900 camas. A questão é que, se ultrapassarmos os 500 de uma forma significativa, colocamos em causa os doentes não-Covid.

Neste momento temos [no Hospital de Santo António] menos 30% de camas para doentes não Covid, porque aumentámos as camas nas unidades Covid. A dimensão da redução é semelhante em todo o país, de acordo com o inquérito conduzido pela SPMI.

Urgência: “Já estamos com uma afluência quase igual à dos últimos anos”

Como está a afluência às urgências no Hospital de Santo António? Tem notado uma recuperação em relação à primeira vaga?

Os mais prejudicados foram os doentes não-Covid, que deixaram de vir às urgências com medo de se contaminaram. Comparativamente, na primeira vaga a redução foi de 50%. Nesta segunda vaga, já se ficou pelos menos 20%. Já estamos com uma afluência quase igual à dos últimos anos.

Por outro lado, acho que as pessoas têm agora a noção, com esta pandemia, de que a doença ligeira deve ser tratada nos cuidados de saúde primários e não no hospital. Há agora muito menos doentes com pulseiras azuis e verdes (os poucos que vêm são os que acham que têm sintomas típicos de Covid).

Como é que avalia a resposta que tem sido dada pelo SNS aos doentes não-Covid?

A resposta [aos doentes Covid e não-Covid] não é igual. Aqui [no Santo António] fazemos cerca de 50% das consultas por telefone. A recomendação que temos é a de não fazer, com o mesmo doente, mais do que duas consultas não presenciais consecutivas. Nos doentes com vários problemas, ter uma consulta presencial é completamente diferente. Há alguma perda para o doente. Houve também uma redução da atividade cirúrgica não urgente. É óbvio que não podemos ter um SNS preparado para uma pandemia que acontece de 100 em 100 anos.

“Não podemos ter um SNS preparado para uma pandemia que acontece de 100 em 100 anos”

Com que espírito é que os profissionais de saúde vão enfrentar mais um ano de pandemia?

Há um cansaço generalizado. A vacina trouxe um enorme alento mas já se nota um cansaço dos profissionais da linha da frente, para além de um menor voluntarismo por parte de outras especialidades. Na primeira vaga, essas especialidades fizeram um shutdown completo e conseguiram ajudar. Tive internos de pedopsiquiatria a observar doentes não-Covid, uma vez que nós (a Medicina Interna, a Infecciologia) estávamos mais junto aos doentes Covid. Agora, nota-se menos esse voluntarismo.

Sente que a pandemia agravou a saída de profissionais para o setor privado?

É preciso esperar para ver. Uma pandemia resolve-se com um SNS estruturado e forte. Tínhamos um SNS subfinanciado – faltavam médicos, enfermeiros auxiliares – e, finalmente, foram contratados profissionais. Mas o défice já existia.

Por outro lado, a pandemia é uma fonte de grande cansaço mas também [pode trazer] um sentimento de vitória se chegarmos ao fim a correr bem. Por exemplo, neste momento, temos uma taxa de mortalidade que é metade da média europeia.

“Nos países civilizados, os profissionais de saúde trabalham ou no privado ou no público”

Não há, portanto, profissionais de saúde, nomeadamente médicos, a saírem a meio da ‘batalha’?

Não. É evidente que o grande chamariz do setor privado é o nível salarial. É incomparável. Por outro lado, temos de discutir a questão da exclusividade dos médicos. Nos países civilizados, as os profissionais de saúde trabalham ou no privado ou no público. Esta misturada que existe em Portugal, em que os médicos saltitam entre o público e o privado para conseguirem auferir um salário decente, tem de nos levar a pensar até que ponto não seria melhor ter uma maior disponibilidade das pessoas e estar cada um no seu sítio.

Tem sentido um maior esforço por parte da Segurança Social (SS) no sentido de libertar as camas ocupadas com doentes que aguardam vaga em lares e na Rede Nacional de Cuidados Continuados?

Os locais mais afetados são os serviços de Medicina Interna, que tinham, antes da pandemia, 25% das camas ocupadas com doentes com alta clínica. É insustentável. Os colegas espanhóis ficam abismados.

Com a pandemia, a SS mexeu-se. Estávamos com tempos de espera, para colocação dos doentes em lares, de seis a oito meses. A verdade é que a SS começou a pagar a lares privados para tirar os doentes dos hospitais. No meu serviço, foram colocados todos os doentes. Se não fosse isso, estávamos completamente perdidos.

Nota: Esta entrevista foi realizada no dia 30 de dezembro

Tiago Caeiro/SO

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