Arquivo de Carlos Martins - Saúde Online https://saudeonline.pt/autor-so/carlos-martins/ Notícias sobre saúde Mon, 11 Aug 2025 13:48:47 +0000 pt-PT hourly 1 https://saudeonline.pt/wp-content/uploads/2018/12/cropped-indentity-32x32.png Arquivo de Carlos Martins - Saúde Online https://saudeonline.pt/autor-so/carlos-martins/ 32 32 E eu, como médico de família, fico calado? https://saudeonline.pt/e-eu-como-medico-de-familia-fico-calado/ https://saudeonline.pt/e-eu-como-medico-de-familia-fico-calado/#respond Tue, 12 Aug 2025 07:44:00 +0000 https://saudeonline.pt/?p=177895 Médico de Família, Doutorado com título de Agregado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

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Kaiserslautern, Alemanha. Ano de 1965
Secundino tinha chegado há pouco tempo. A saudade da família e da sua terra apertava, mas havia esperança. Na fábrica onde trabalhava, encontrou um acolhimento que nunca esqueceria. Havia tradutor para os recém-chegados, aulas de alemão e, passados poucos meses, conseguiu trazer a esposa e as três filhas. Apesar das diferenças culturais e linguísticas, com o passar do tempo, a integração foi possível. A comunidade portuguesa crescia e agora já tinham professores portugueses. Dessa forma, os filhos dos portugueses seriam educados nas duas línguas. Tinham um sacerdote português, um rancho folclórico adulto e outro infantil, além de dois clubes de futebol.
A sociedade alemã fazia questão de apoiar. Às vezes eram ofertas simples, como um móvel para a casa — um gesto que, para quem pouco tinha, significava muito.
Em poucos dias, Secundino e a família tiveram acesso a cuidados de saúde, médicos de clínica geral e até médicos de outras especialidades. Era algo inédito nas suas vidas. A qualidade de vida melhorava. Secundino sentia que a decisão de emigrar tinha valido a pena.

Lisboa, Portugal. Ano de 2025

Kamal tem 26 anos e partilha um quarto com oito pessoas, em condições que desafiam a dignidade humana. A casa mal se areja, o chão está sujo, insetos proliferam. Dormir é quase impossível, entre o prurido e o barulho. No início, ainda havia risos entre companheiros. Agora, só silêncio e tristeza. Há uns dias, numa casa ali perto onde viviam pessoas como ele, até houve um incêndio.
Todos lutam para legalizar documentos e encontrar trabalho. Quando há biscates, o dinheiro mal dá para sobreviver.
Kamal quer trabalhar. Mas, na rua, sente o olhar de desdém, ouve insultos, percebe que não é bem-vindo. Pergunta-se como chegou aqui, tão longe do sonho que tinha ao sair do seu país. Há dias, gritaram-lhe na cara. Ele não percebeu, mas o amigo que ia com ele traduziu:
VAI TRABALHAR!
Pudera, trabalhar quer ele! Mas nem isso consegue, porque não lhe arranjam os papéis. Na última semana, tem-se sentido doente. Dores de barriga! E até teve febre. Tentou encontrar um médico, mas disseram-lhe que não havia. Um companheiro arranjou-lhe um comprimido para a febre.

Secundino era meu avô. Kamal é uma personagem fictícia, mas a realidade que representa é bem real. Outrora país de emigrantes, hoje, em pleno século XXI, temos imigrantes a viver na precariedade, sem condições básicas, sem acesso à saúde, invisíveis aos olhos de muitos. Esta realidade não é compatível com os valores fundamentais da Medicina Geral e Familiar, nem com os princípios de uma sociedade justa.
E eu, como médico de família, fico calado?

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