A Saúde e a Constituição
Médico de Família

A Saúde e a Constituição

No artigo anterior “Quem ergueu o SNS” desmistifiquei a ideia mil vezes propagandeada pela esquerda de que o SNS era obra e propriedade da esquerda. Demonstrei como o SNS tinha sido posto de pé durante os 15 anos seguidos em que PSD esteve no Governo, os quais se iniciaram dois meses após a aprovação do DL do SNS no Governo de iniciativa Presidencial da Eng. Pintassilgo

Agora importa desmitificar outra ideia feita pela Esquerda. Que o atual Modelo Público de SNS resulta da Constituição.

Vejamos então:

Artigo 64.º

Saúde

1- Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover.

2- O direito à proteção da saúde é realizado:

a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito.

b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a proteção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável.

3- Para assegurar o direito à proteção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado:

a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação;

b)Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde;

c) Orientar a sua ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos;

d) Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade;

e)Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico;

f)Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência.

4- O serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada.

Este é o atual artigo da Constituição portuguesa referente à Saúde

Prestação

Note-se que, contrariamente à ideia feita, em nenhum ponto deste artigo se fala que os serviços de saúde têm que ser prestados pelo Estado. Diz assim no nr 2:

  1. a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito; (mas não diz que o SNS tem que ser constituído por Unidades Públicas)

e no nr. 3 :

  1. a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação;
  2. b) Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde;

Também aqui não se refere à obrigatoriedade de serem unidades públicas, de gestão pública.

Aliás, isto tem sido reconhecido pelos maiores partidos, PS e PSD. Lembremos que o PS legislou as Unidades de Saúde Familiares do Modelo C, que seriam inteiramente privadas, mas contratualizadas com o SNS, como parte integrante da rede dos Cuidados de Saúde Primários do SNS em igualdade de circunstâncias com as demais Unidades dos Cuidados de Saúde Primários.

E o PSD preparou e o PS implementou os Hospitais em regime de Parceria Público Privada, que sendo unidades públicas (embora até construídas por privados), são de gestão privada.

O atual SNS assente numa rede quase exclusivamente pública e de gestão pública não decorre assim da Constituição, mas das opções políticas dos sucessivos governos.

Aliás, opções políticas que até são contrárias ao princípio Constitucional da Subsidiariedade estabelecido no artigo 6º da Constituição, como bem explicou o Prof. Mário Pinto: https://observador.pt/opiniao/os-partidos-da-geringonca-nao-cumprem-a-democracia/. O princípio da subsidariedade significa que o Estado só intervém quando não existe resposta suficiente por parte da sociedade civil. Ou seja, exatamente o contrário que a nova Lei de Bases da Saúde, feita à esquerda, estipula.

Financiamento

Também sobre o Financiamento do SNS e da Saúde em nenhum ponto nos diz que tem que ser assente no Orçamento de Estado. Outra ideia feita e que resulta apenas das opções governativas

Diz no nr. 2

  1. a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito;

e no nr 3

  1. a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação;
  2. c) Orientar a sua ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos;

 

Assim o que a Constituição garante é que o acesso aos cuidados de saúde, ou seja, quando se precisam de cuidados de saúde, seja gratuito (ou tendencialmente gratuito e tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos). Aquilo que a Constituição defende é o direito de todos ao acesso aos Cuidados de Saúde, sem entraves económicos ou financeiros no momento do acesso. E quando fala em socialização dos custos está a dizer que quem tem mais pagará mais para o bolo de onde sairá o pagamento às Unidades Prestadoras de Cuidados de Saúde e quem tem menos, pagará menos.

Ora se a via do Orçamento de Estado é uma via possível para realizar a Constituição, a via do Seguro Social de Saúde Universal, em que o Estado, via OE, apoia no pagamento das prestações para o SSS os cidadãos na função inversa das suas capacidades económicas também o é.  A Via OE resulta também apenas de uma opção governativa e não da Constituição.

Aliás, ainda recentemente, propostas académicas (ISCTE), avalisadas por Francisco Ramos, Secretário de Estado Adjunto da Saúde do atual Governo Socialista (e de vários anteriores) admitiam um Seguro Social para as áreas ainda não cobertas pelo SNS, ou muito insuficientemente, como a estomatologia.

Pagamento às Unidades Prestadoras

Também a constituição nada nos diz sobre como é feito o pagamento às Unidades Prestadoras. Apenas no diz que os cuidados de saúde prestados não serão pagos diretamente pelos cidadãos, logo terão que ser feitas por uma entidade terceira, sem prejuízo de eventuais taxas moderadoras que deverão ter esta função e não de fonte de financiamento importante das Unidades Prestadoras.

Assim, mais uma vez, as soluções que estão no terreno não derivam da Constituição mas de opções Governativas. E de facto, pela Constituição, desde que o pagamento seja feito por entidade terceira e não diretamente pelos cidadão quando acede aos cuidados de saúde, o financiamento de uma Unidade do SNS (ou dos profissionais de saúde) pode ir deste o financiamento pelo Orçamento de Estado atribuindo orçamentos às várias Unidades Prestadoras, ao pagamento por ato, passando por situações intermédias ou mistas como os GDHs e o Modelo B das USFs. Com ou sem incentivos e prémios.

De tudo acima se retira que as propostas que se têm feito para uma novo SNS assente numa rede de unidades de prestadoras contratualizadas com o SNS, e financiadas em função dos serviços que contratualizam ou prestam, por um Seguro Social de Saúde obrigatório, mutualista, comparticipado pelo Estado em função inversa das capacidades económicas dos cidadãos, é perfeitamente constitucional.

Um Sistema que aproveita o que de bom têm os Sistemas Beveredigianos  (universalidade, igualdade no acesso, solidariedade/socialização do financiamento) e Bismarkianos (empreendorismo, iniciativa e investimento privado, seguro social/tabela social, liberdade de escolha, competição por clientes)

Caso, contudo, se entenda fazer uma revisão e atualização da Constituição sugere-se para a Saúde a seguinte proposta de redação:

Proposta de nova redação para o Artigo 64 da Constituição Portuguesa       

Artigo 64

Saúde

1- Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover.

2- O direito à proteção da saúde é realizado:

a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral assente numa rede de unidades de saúde contratualizadas que poderão ser privadas, cooperativas, sociais, ou públicas de gestão pública ou concessionada. A contratualização deve ter em conta a qualidade, a acessibilidade, os resultados e a eficiência e a prossecução das políticas de saúde definidas pelo Governo.

b) Cabe ao Estado vigiar e atuar de forma a garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde.

c) Cabe ao Estado garantir a todos os cidadãos e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, :

 i- 0 acesso, autorregulado, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação,

 ii- A sua qualidade e eficiência

iii- A socialização do financiamento

d) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a proteção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária e de práticas de vida saudável.

Consideram-se como pontos fundamentais alvo de consenso:

– A existência de serviços de saúde suficientes que cubram o Pais

– A contratualização como instrumento fundamental da garantia da Qualidade, Acessibilidade, Resultados em Saúde, Eficiência e prossecução das políticas de Saúde

– A auto regulação como forma de garantir da sustentabilidade

– A socialização dos custos, de forma que nunca se ponham às famílias considerações de natureza económica, no acesso aos cuidados de saúde, sendo que este podem ser muito elevados.

Comentário:

Esta proposta torna claramente constitucional:

– as taxas moderadoras (autorregulação) e outras soluções com vista à sustentabilidade

– a inclusão na Rede do SNS de unidades privadas saúde ou concessionadas de gestão privada (como já hoje acontece nas PPP – hospital de Braga., de Loures, Vila Franca…), deixando para cada Governo a opção sobre o grau de participação da iniciativa privada, social e cooperativa.

– O princípio da contratualização com vista à eficiência, a qualidade e prossecução das políticas de saúde definidas pelo Governo.

– O financiamento indireto via impostos ou via seguro social de saúde (como o já é a ADSE) universal de características mutualistas. (A socialização do financiamento- expressão que aliás já consta)

E sobretudo atribui ao Estado a responsabilidade de os portugueses terem ao seu dispor um Sistema de Saúde que lhes garanta o princípio Constitucional do Direito à Proteção na Saúde.

Na recente discussão da Lei de Bases da Saúde e no seu programa eleitoral, ficou claro que o Partido Socialista se rendeu ao chavão de um “SNS 100% público” e traça linhas vermelhas à sua volta. Só não explica como é que o vai financiar uma vez que em tempo de vacas gordas o deixou perfeitamente descapitalizado, cheio de dívidas e de consultas e cirurgias em atraso, e desfalcado de profissionais. E as vacas não voam.

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