Entrevista: “A enxaqueca atinge cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas em Portugal”
De acordo com dados obtidos no estudo "My Migraine Voice Survey", 79% dos portugueses que sofrem de enxaqueca sentem-se limitados para cumprir as tarefas diárias durante uma crise. Nesse âmbito, entrevistámos a neurologista Elsa Parreira.
Foto: News Farma
O estudo, publicado na National Center for Biotechnology Information, relatou ainda que o impacto da patologia na vida profissional é sentido por cerca de 80% dos inquiridos, sendo que metade (50%) dos doentes faltou ao trabalho por causa da enxaqueca no último mês. Os participantes reportaram ainda uma média de 10 dias prejudicados pela enxaqueca no mês anterior ao estudo e 44% disseram que os ataques duravam um ou mais dias.
Por esse motivo, entrevistámos a Presidente da Sociedade Portuguesa de Cefaleias e neurologista Dra. Elsa Parreira, de forma a conhecer as principais diferenças entre cefaleias e enxaquecas, a sua sintomatologia, o diagnóstico e os possíveis tratamentos.
Saúde Online (SO) – Qual a diferença entre uma cefaleia e enxaqueca?
Dra. Elsa Parreira (EP) – Cefaleia é o termo médico para dor de cabeça, que deriva da palavra céfalo. Já a enxaqueca é um tipo específico de dor de cabeça, um tipo específico de cefaleia, que se caracteriza por crises recorrentes de dores de cabeça intensas e incapacitantes, acompanhadas de uma série de sintomas, como náuseas, vómitos, intolerância aos estímulos e que provocam incapacidade quer pela intensidade da dor quer pelos sintomas que a acompanham durante a crise.
SO – Quais os sintomas que indicam o quadro de enxaqueca?
EP – A enxaqueca caracteriza-se por aparecerem, de forma recorrente (repetida), dores de cabeça – episódios esses que podem surgir com uma frequência variável desde uma por ano a várias por mês, inclusive todos os dias ou quase todos os dias.
Os sintomas habitualmente são: dor de cabeça geralmente moderada ou severa; que pode concentrar-se apenas numa zona ou metade da cabeça; trata-se de uma dor pulsátil – ou seja, é uma dor latejante que se sente como se fosse o coração a bater na cabeça -; uma dor que se faz acompanhar de náuseas, vómitos, intolerância à luz ou ao barulho; intolerância aos movimentos; muitas vezes também existem dificuldades de concentração e de raciocínio.
Para além destes sintomas, a enxaqueca pode também fazer-se acompanhar de outros fenómenos, designadamente a aura de enxaqueca, que provoca alterações na visão (como ver luzes brilhantes ou visão turva).
Normalmente, as crises de enxaquecas duram entre um a três dias e podem aparecer regularmente uma vez por mês, uma vez de dois em dois meses ou várias vezes por mês, sendo variável de pessoa para pessoa e ao longo da vida.
SO – Como é efetuado o diagnóstico?
EP – O diagnóstico é exclusivamente clínico. Ou seja, é pela história clínica, pelos dados do paciente e na presença dos sintomas característicos e o tempo de evolução necessário que o médico faz o diagnóstico.
Não existe nenhum exame que as pessoas façam e que permita ou facilite o diagnóstico. Muitas vezes, os médicos pedem exames complementares, mas isso serve somente para excluir outras causas de dor de cabeça.
Habitualmente, a observação dos doentes é negativa. Portanto, têm uma observação normal, o exame neurológico é também normal [sem se verificar a existência de outras causas que levem ao surgimento cefaleias enquanto sintoma].
É o conjunto de todos estes dados que nos permitem chegar ao diagnóstico.
SO – Quais os tipos de tratamento que existem atualmente?
EP – Existem três tipos de tratamento:
– O primeiro consiste em medidas de alteração dos hábitos de vida do paciente de modo a melhorar os sintomas da Enxaqueca. Estas passam por dormir o número de horas adequado, não estar muito tempo sem comer, beber a quantidade de água necessária, evitar o stress, praticar exercício físico. No fundo, ter um estilo de vida saudável.
– É importante também identificar fatores desencadeantes – fatores que o individuo tenha notado que lhe possa provocar este tipo de dor de cabeça –, e evitá-los.
– Em relação ao tratamento farmacológico pode ser feito em duas vertentes:
- O tratamento agudo, que passa por tratar a dor de cabeça quando ela aparece de modo a que a dor não se prolongue e não dure tanto tempo, e é realizado com analgésicos simples, anti-inflamatórios não-esteroides ou com medicamentos mais específicos como é o caso dos triptanos – medicamentos desenvolvidos para tratar a crise de enxaqueca -;
- Mas, se a pessoa tem crises frequentes e incapacitantes (mais de duas a três vezes por mês), é preferível fazer o chamado tratamento preventivo, realizado através da toma diária de medicamentos durante um período que pode ir, no mínimo de 4 a 6 meses. Este destina-se a ter um melhor controlo dos sintomas, ou seja, permite diminuir as vezes com que as dores da cabeça aparecem e que, quando estas surgem, o façam com sintomas mais ligeiros do que os registados anteriormente, não sendo tão incapacitantes nem tão incomodativas. Quando o paciente melhora, este tratamento suspende-se ao fim de um certo tempo.
Para o tratamento preventivo, existem várias terapêuticas orais, como por exemplo, os fármacos beta-bloqueantes ou os anti-epiléticos. Dispomos, pois, de uma panóplia de medicamentos que foram desenvolvidos para outras doenças, mas que se descobriu que também atuavam na enxaqueca, sendo eficazes a reduzir o número e a frequência das crises.
No caso da enxaqueca crónica (a que surge todos os dias), utiliza-se também a toxina botulínica como tratamento preventivo eficaz, que é administrada de 3 em 3 meses.
Para além destes medicamentos utilizados desde há vários anos, foram desenvolvidos recentemente fármacos inovadores que pertencem a uma classe de medicamentos produzidos especificamente com base na fisiopatologia da enxaqueca; são medicamentos contra o CGRP, que está envolvido na génese das crises de Enxaqueca. Estes medicamentos são anticorpos monoclonais e são administrados por via injetável, subcutânea, de mês a mês ou de 3 em 3 meses. É ainda de ressalvar que estes medicamentos específicos têm menos efeitos secundários que os tratamentos orais já utilizados.
SO – Esses tratamentos inovadores já estão ao dispor dos pacientes?
EP – O anticorpo monoclonal Erenumab já está disponível em Portugal, apesar de não ter ainda comparticipação estatal (estando ainda a decorrer o processo no Infarmed), mas sim, já está disponível.
SO – E quais os tratamentos para as cefaleias banais?
EP – No que respeita às cefaleias mais banais (como a de tensão), o tratamento assenta nas mesmas bases do que o da enxaqueca, com uma pequena exceção: os triptanos não são utilizados, uma vez que não produzem qualquer efeito. São utilizados os analgésicos, como o paracetamol, a aspirina e outros anti-inflamatórios para o tratamento da crise aguda. No entanto, se as crises são muito frequentes, entre 8 a 10 vezes por mês, fazemos também tratamento preventivo com um medicamento antidepressivo (a Amitriptilina). Portanto, é a mesma filosofia de tratamento como na enxaqueca, mas os fármacos utilizados são diferentes.
SO – Qual a prevalência de enxaquecas e das cefaleias ditas normais em Portugal?
EP – Há mais de 300 tipos de cefaleias, sendo a mais frequente e mais banal, a cefaleia de tensão, que qualquer pessoa pode ter. Em Portugal (e no resto do mundo), a cefaleia de tensão afeta cerca de 70-80% da população.
Já a enxaqueca é menos frequente, apesar de ser mais incapacitante, mas mesmo assim, atinge cerca de 15% da população mundial, representando cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas com esse diagnóstico em Portugal. É mais frequente nas mulheres nas faixas etárias mais ativas, entre os 20 e os 40 anos.
EQ/SO