Intervenção nas comunidades: as experiências no terreno

A 6ª edição do Virology Meeting deu voz, pela primeira vez, às várias associações e projetos que atuam nas comunidades de risco, onde se encontram os indivíduos com maior risco de estarem ou virem a ser infetados. Num trabalho contínuo, resultado de um esforço muitas vezes invisível, fazem rastreios, acompanham o percurso dos doentes, agilizam o acesso à cascata de cuidados, cuidam da retenção nos cuidados e, em alguns casos, levam o tratamento até estas populações.

Ana Duarte

Junto das populações de risco

Há já três anos e meio que a Ser+, uma associação de base comunitária, tem em curso o projeto “Diagnosticar Precocemente na Linha de Cascais e Oeiras”. Este projeto atua nas populações de risco nesta zona da Área Metropolitana de Lisboa: trabalhadores do sexo; população sem-abrigo; utilizadores de drogas intravenosas; homens que fazem sexo com homens e populações migrantes.

Ana Duarte, da Ser+

Com uma média de 2 mil rastreios efetuados anualmente, a SER+ desloca uma unidade móvel a locais estratégicos dos concelhos de Cascais e Oeiras, com o objetivo de se aproximar das comunidades e conhecer melhor as populações mais vulneráveis. “Temos horários diferentes em função do local onde vamos. Se estivermos junto ao SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras] ou da Loja do Cidadão, vamos de manhã porque há mais afluência. Para os bairros vamos da parte da tarde e, quando apoiamos a distribuição de alimento aos sem-abrigo, sempre à noite”, explica Ana Duarte, da Ser+.

Para além dos testes ao VIH, sífilis, VHC e VHB, os técnicos da Ser+ fazem também um trabalho de sensibilização para a importância do diagnóstico precoce e para a adoção de comportamentos preventivos.

Um dos objetivos da associação é aumentar a ligação dos doentes aos cuidados de saúde. De um total 78 casos reativos detetados em 2018 (de entre 1944 pessoas rastreadas), 56% foram a uma primeira consulta no SNS. Uma percentagem ainda aquém do ideal mas que representa um avanço importante tendo em conta o afastamento que estas populações têm dos cuidados de saúde tradicionais.

A Ser+ conta também com mais de 100 parcerias estabelecidas (hospitais, municípios, associações de moradores, entre outros). É esta rede que permite, muitas vezes, dar um outro tipo de apoio a comunidades que se confrontam, também, com a pobreza, falta de emprego, falta de condições de habitação, entre outros problemas.

Vítor Magno Pereira

Eliminar Hepatite C na Madeira

A microeliminação é o caminho mais rápido e eficaz para Portugal conseguir eliminar a Hepatite C como problema de saúde pública até 2030. É pelo menos esta a opinião de muitos especialistas de renome. À falta de um programa nacional, que defina uma estratégia concertada, uma região do país não quis esperar pelo comando do poder central e avançou desde já com um plano de eliminação: a Madeira.

As autoridades regionais consideravam ineficazes os atuais sistemas de referenciação para o diagnóstico, acompanhamento e tratamento das populações com VHC e, por isso, decidiram implementar um plano para eliminar o vírus, muito prevalente em várias micropopulações: reclusos, doentes dialisados, utentes da Unidade de Toxicodependência (Alto e Baixo Limiar) e doentes das unidades de psiquiatria, saúde mental, e reabilitação psicossocial.

No âmbito deste projeto realizaram-se testes rápidos VHC a todos os utilizadores das unidades móveis que percorrem a região – estas carrinhas são decisivas numa ilha com uma orografia difícil e com uma rede de transportes públicos insuficiente.

Dr. Vítor Magno Pereira, gastroenterologista do Hospital do Funchal

“Dadas as várias barreiras, foi necessário reunir forças de áreas diferentes. Não só o Serviço de Gastrenterologia aliado ao Serviço de Infeciologia [do Hospital do Funchal], como também o poder político e a indústria farmacêutica. Temos também algumas condições que potenciam este plano, nomeadamente um laboratório central, que reúne análises dos cuidados hospitalares e dos cuidados de saúde primários”, explicou o Dr. Vítor Magno Pereira, gastroenterologista do Hospital do Funchal e dos envolvidos no programa de microeliminação daquela região autónoma.

Os resultados da estratégia já começam a ser visíveis. Após a implementação do plano, foram identificados 48 doentes com infeção crónica por VHC. Foram também pedidos 41 tratamentos. Antes, a resposta era quase nula, com apenas 4 doentes referenciados para consulta e 2 tratamentos concluídos.

Pesem os avanços, a verdade é que persistem algumas barreiras. “Na Madeira, não temos fibroscan, estamos dependentes do empréstimo desse equipamento, que acontece a cada 3 ou 4 meses e fica na região apenas durante duas a quatro semanas. Nesse espaço de tempo, temos de reunir os doentes e avaliá-los”, explica o especialista.

Telma Azevedo

Consulta descentralizada

Os antigos e atuais utilizadores de droga com resultado positivo para VHC têm, desde janeiro, uma consulta para tratamento da hepatite C fora dos hospitais, uma iniciativa do Grupo de Ativistas em Tratamento, que pretende aproximar esta população dos cuidados de saúde.

É a primeira consulta comunitária descentralizada em Portugal e resulta de uma parceria entre Serviço de Gastroenterologia do Centro Hospitalar Lisboa Norte, que engloba os hospitais Santa Maria e Pulido Valente e o GAT.

Dra. Telma Azevedo, infecciologista do Hospital de Setúbal

Os responsáveis do projeto esperam conseguir tratar 200 pessoas no primeiro ano de funcionamento, através de um algoritmo simplificado de rastreio que diminua o número de visitas necessárias para iniciar tratamento, com a consequente redução de danos. Mesmo com uma rede de transportes estruturada (como aquela que existe em Lisboa), muitos utentes não vão ao hospital (seja por desconhecimento, desinteresse ou falta de capacidade económica). Deste modo, é fundamental aproximar os cuidados.

Com a consulta sediada na Mouraria, mesmo no centro da capital, torna-se mais fácil quebrarem-se barreiras de comunicação, combater o estigma e o desconhecimento em relação à doença. A expectativa é que 95% dos doentes completem o tratamento, sendo que, desses, 95% tenham uma Resposta Virológica Sustentada, ou seja, fiquem curados.

Margarida Sampaio

Do hospital para o terreno

Eliminar a infeção é também a intenção de duas equipas do Centro Hospitalar e Universitário do Algarve (CHUA), que trabalham em parceria com as autoridades de saúde. O objetivo é tratar o maior número possível de toxicodependentes infetados com VHC seguidos na Equipas Técnicas Especializadas de Tratamentos, as chamadas ETET.

Cabe às ETET fazer o rastreio. Se o doente tiver anticorpo anti-VHC positivo, a consulta médica de Hematologia e Infeciologia do polo de Faro desloca-se até à ETET de Faro, superando a dificuldade que alguns indivíduos têm em se deslocar ao hospital, o que resulta em taxas de adesão ao tratamento muito baixas. O mesmo faz a consulta de Hepatologia do polo de Portimão, no Barlavento.

Dra. Margarida Sampaio, gastroenterologista do Centro Hospitalar Universitário do Algarve

A equipa do polo de Faro já trabalha junto da comunidade, uma vez que não foi exigido protocolo de atuação assinado tanto pelo Conselho de Administração do CHUA como pela Administração Regional de Saúde do Algarve. Assim, a equipa desloca-se uma vez por semana aos centros de tratamento, onde são consultados, em cada visita, entre 8 e 10 doentes no sentido de confirmar a infeção e iniciar tratamento. Do total de 2422 doentes em seguimentos nas ETET do Algarve, cerca de 60% têm anticorpo anti-VHC positivo, sendo que dois terços destes se encontram na zona do Sotavento.

Entre as barreiras a ultrapassar está a demora excessiva na aquisição de fármacos por parte do CHUA, que, atualmente, demora cerca de 6 meses.

Gonçalo Bento

Encaminhar e acompanhar

No concelho de Loures, na área da Grande Lisboa, está implementado o “Interliga-te”, um projeto da Liga Portuguesa contra a Sida que, em conjunto com os cuidados de saúde primários (neste caso, com o ACES de Loures-Odivelas), procura detetar, encaminhar e acompanhar as pessoas infetadas com VIH.

Gonçalo Bento, da Liga Portuguesa contra a Sida

O foco está nos indivíduos com mais de 50 anos portadores de infeções sexualmente transmissíveis ou identificados como utentes em risco, quer pela história familiar quer por eventuais consumos aditivos. A urgência de intervir neste grupo etário evidenciou-se quando foi divulgado o último relatório da Infeção VIH/SIDA em Portugal, que aponta que 28% dos novos casos de infeção foram detetados em indivíduos com mais de 50 anos. Para muitos tratou-se de um diagnóstico tardio, precisamente aquilo que o “Interliga-te” não quer continuar a ver. A aposta tem de ser feita na deteção precoce, na referenciação para consultas de especialidade e na adesão à terapêutica.

Ao doente é atribuído um gestor de caso, que o acompanha ao longo de todo o processo. Os dados recolhidos apontam para que um em cada 10 doentes que fazem o rastreio no “Interliga-te” tem VIH.

 

Paula Peixe

Ir ao encontro dos doentes

O projeto de assistência e terapêutica deslocalizada a utentes utilizadores de drogas começou em fevereiro deste ano, tendo sido já avaliados pela equipa do Hospital Egas Moniz (de que a médica gastrenterologista Paula Peixe faz parte) cerca de 50 doentes com anticorpo anti-VHC positivo já conhecido mas que não estavam a ser seguidos noutras instituições. Existem também casos de doentes que ainda não estavam identificados.

Esta população vulnerável, de utentes em programa de substituição de opiáceos de baixo limiar de exigência, tem dificuldade na ligação com os cuidados de saúde tradicionais, nomeadamente o hospital. Para facilitar essa ligação, um médico desloca-se aos pontos de distribuição de metadona na zona de Lisboa e é aí que decorre a consulta.

Dra. Paula Peixe, gastroenterologista do Hospital Egas Moniz

Com a apoio da Associação Ares do Pinhal, o médico avalia os consumos de cada utente, as comorbilidades que possa apresentar, bem como a medicação que esteja a tomar e os sinais de descompensação passada e atual.

Neste momento, cerca de 25 doentes já foram inscritos no portal da Hepatite C e aguardam tratamento. Nas unidades móveis da Associação Ares do Pinhal (que já completou 30 anos de atividade), são seguidos 1200 doentes mas 180 ainda estão por rastrear.

Rui Coimbra

Trabalhar entre pares

É nos bairros sociais no Grande Porto que a CASO (Consumidores Associados Sobrevivem Organizados) atua. Ainda marcados pelo consumo de drogas a céu aberto, estes espaços têm altos níveis de desemprego, violência, insalubridade. Perante este cenário, as equipas da CASO fazem promoção de saúde junto das populações vulneráveis: utilizadores de drogas; sem-abrigo; trabalhadores sexuais.

Até há bem pouco tempo, com uma sala de consumo limpa e equipada com material, davam resposta ao problema dos espaços degradados e insalubres onde muitas pessoas consumiam drogas, expondo-se a doenças e violência.

Rui Coimbra, da CASO

Noutra vertente, a CASO disponibiliza formação a moradores destes bairros para que eles mesmos criem microprojectos de intervenção nos locais de consumo, envolvendo toda a comunidade. Cada local de intervenção tem um monitor da CASO, mais experiente, que acompanha as atividades e as necessidades de cada um.

Para além disso, disponibiliza apoio para os utentes poderem tratar da documentação pessoal ou de assuntos jurídicos.

Rui Gaspar

Levar o tratamento aos doentes

 

Há quase 140 anos que os Albergues Noturnos do Porto acolhem pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, muitas vindas da rua. Como é habitual nestas situações, a saúde não é uma prioridade para estas populações. Ainda menos se não se manifestarem sintomas, como acontece numa fase inicial da infeção pelo vírus da Hepatite C.

Perante este quadro, os doentes não procuram os cuidados de saúde, o que lhes poderia dar a oportunidade de receberem o tratamento que praticamente lhes garante a cura. Foi a pensar neste problema que uma equipa de médicos do Centro Hospitalar de São João começou a realizar consultas nos albergues a todos os doentes com anticorpo anti-VHC positivo.

 

Dr. Rui Gaspar, Gastroenterologista do Centro Hospitalar Universitário do Porto

 

“Temos uma enfermeira da ABRAÇO que colabora connosco e rastreia os doentes”, diz o médico Rui Gaspar, para, de seguida, explicar que na consulta in loco é realizada a história clínica do doente, exame físico e Fibroscan, para além da recolha de análises. “Quando tenho o resultado das análises, peço o tratamento. Por isso, na segunda vez que lá vou é logo para começar a terapêutica”, conclui.

O projeto COM ABRIGO já rastreou mais de 250 doentes, sendo que 20 deles estavam infetados com VHC. Foram também realizadas 10 consultas, estando quatro doentes a aguardar o tratamento. A equipa de que Rui Gaspar faz parte visita também centros de saúde e prisões.

Tiago Caeiro

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