22 Mar, 2019

Falha na eliminação da Hepatite C será vergonha nacional, afirmam especialistas

Se Portugal falhar o compromisso assumido em setembro de 2016, de cumprir o objetivo delineado pelas Nações Unidas, de reduzir a incidência do vírus da Hepatite C (VHC) em 90% e a mortalidade associada em 65% até 2030, será uma verdadeira “vergonha Nacional”.

Notícia rectificada: Por lapso, na notícia publicada faz-se menção ao Dr. José Poças, Diretor do Serviço de Doenças Infecciosas do CH de Setúbal, citando-o, quando na verdade a citação é de uma intervenção de Luís Mendão, do GAT. Aos visados, apresentamos o nosso pedido de desculpas.

Se Portugal falhar o compromisso assumido em setembro de 2016, de cumprir o objetivo delineado pelas Nações Unidas, de reduzir a incidência do vírus da Hepatite C (VHC) em 90% e a mortalidade associada em 65% até 2030, será uma verdadeira “vergonha Nacional”.

A afirmação é do Professor Guilherme Macedo, diretor do Serviço de Gastrenterologia do Centro Hospitalar de São João (CHSJ) e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) e foi proferida na conferência LETS END HEP C – Políticas e Ferramentas de Apoio à Decisão Política em Saúde, organizada em conjunto pela Assembleia da República e pela Universidade Católica Portuguesa.

A possibilidade de incumprimento por parte de Portugal surge num momento de viragem na política nacional de combate à Hepatite C. De país exemplar a nível mundial, por ter sido um dos primeiros e únicos a disponibilizar a medicação para tratar a doença, curando-a, em 2015, Portugal encontra-se hoje nas margens desse combate, com os médicos a denunciarem grandes atrasos no acesso aos antivirais de ação direta, que hoje permitem curar a doença. “No meu hospital a espera média é de cerca de seis meses”, testemunha Guilherme Macedo. Em alguns hospitais, a espera é muito superior, ultrapassando um ano, afirmaram ao nosso jornal diversos especialistas.

“Será uma vergonha enorme para o nosso país, depois ter sido criadas as condições, acabar por não cumprir a meta”, alerta o Prof. Doutor Guilherme Macedo

Como revelámos há uma semana, fontes contactadas pelo nosso jornal justificam os atrasos no acesso à medicação com a alteração do modelo de contratualização, que até janeiro de 2018 era centralizado na Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Atualmente, a compra é feita pelos hospitais, que em muitos casos, sufocados pelas dívidas a fornecedores, atrasam as aquisições o máximo que podem.

Aos problemas de acesso aos medicamentos, soma-se a indefinição de uma estratégia clara de combate à Hepatite C, que de acordo com os especialistas passa por um rastreio de base nacional, que permita identificar as pessoas com hepatite C que ainda estão por tratar, um número que, estima-se, deverá situar-se entre os trinta e os quarenta mil indivíduos.

Microeliminação é essencial

Para se atingirem os objetivos definidos pela Nações Unidas, é necessário, também, afirmam os especialistas, “chegar aos grupos mais difíceis de alcançar, como os utilizadores (e ex-utilizadores) de drogas por via endovenosa, os homens que fazem sexo com outros homens e a população prisional, que na sua maioria não tem acesso a tratamento. A estes grupos, os especialistas juntam o das pessoas que foram sujeitas a transfusões de sangue ou transplante de órgãos antes de 1992, doentes de hemodiálise, e os homens nascidos entre 1945 e 1965.

Só a eliminação da infeção nestes grupos, também designada de microeliminação, permitiria a Portugal atingir os objetivos com que se comprometeu a nível internacional.

“O hospital tem de ser capaz de sair; de ir ter com os doentes e não o inverso. Isto porque para muitas destas pessoas, os hospitais são locais inóspitos”, aponta Rui Tato Marinho que afirma que “se não tivermos os mecanismos de early detections e verificação atempada de surtos epidemiológicos podemos perder a batalha”.

Para além de constituir um grave problema de saúde pública, a hepatite C tem custos económicos e sociais relevantes. O VHC está relacionado com várias complicações, como a cirrose hepática, que pode evoluir para descompensação hepática ou carcinoma hepatocelular e levar à necessidade de transplante de fígado e mesmo à morte. Os custos médios diretamente associados aos estádios mais avançados da doença são elevados, estimando-se em 71 milhões de euros, em 2014.

Prof. Doutor Rui Tato Marinho: “Precisamos de voltar à estaca zero, ou seja, tratamento para toda a gente e de forma fácil”

A todos estes argumentos, os especialistas acrescentam outro: os custos de tratar a hepatite C com os novos antivirais de ação direta são muito inferiores aos de tratar cronicamente a doença, como sucedia até 2014, ano em que surgiram os primeiros medicamentos capazes de eliminar completamente o vírus. Para além de não terem praticamente nenhuns efeitos adversos e serem administrados por via oral e não por via endovenosa, como acontecia no passado.

Ferramenta informática permite estimar se Portugal vai ou não cumprir compromisso

 Na sessão organizada na Assembleia da República, foi apresentada uma ferramenta informática que permite simular o impacto das decisões políticas no cumprimento do objetivo de eliminação da hepatite C enquanto problema de saúde pública.

Desenvolvido pela Universidade Católica, a “calculadora de políticas” permite que qualquer pessoa, mesmo que não tenha formação especializada na área, possa estimar quais os impactos relativos de uma série de medidas que podem – ou não – ser adotadas pelo poder político no objetivo de reduzir a incidência do vírus da Hepatite C (VHC) em 90% e a mortalidade associada em 65% até 2030, objetivo com que Portugal se comprometeu em 2016. O modelo incorpora 24 políticas de saúde na área da Hepatite C, com várias subcategorias, que são aceites atualmente como integrando a cascata de cura do VHC e que poderão estar a ser implementadas – ou não – em cada país.

Prof. Henrique Lopes: “Incluir o rastreio das grávidas nas guidelines custa quase zero e pode ter impacto. Facilitar o acesso às consultas de especialidade também”

Após aceder à plataforma e ferramenta online do projeto LEHC (www.letsendhepc.pt), e depois de verificar os dados do país, o utilizador terá a possibilidade de testar as 24 políticas disponíveis usando o “calculador de políticas”. O impacto de cada política é então calculado e todos os resultados são apresentados, incluindo se essas alterações aceleram (ou não) o caminho para a eliminação nesse cenário. O utilizador pode igualmente ver o ano exato durante o qual a eliminação ocorrerá.

“O uso ativo do calculador de políticas contribuirá para um pensamento mais efetivo baseado em evidências e tomada de decisões, seja o utilizador político, ativista ou doente”, informam os responsáveis pelo projeto, liderado pelo Professor Henrique Lopes. Para o Professor e Investigador em Saúde Pública da Unidade de Saúde Pública do Instituto de Ciências da Saúde (ICS) da Universidade Católica Portuguesa (UCP), “é essencial que haja uma visão humanista e holística da hepatite C. Tem de ser possível apontar direções e comprometer as pessoas. Esta ferramenta não nos vai dizer quantas pessoas estão ao certo infetadas em Portugal. Serve, isso sim, para nos informar sobre o impacto de medidas que podem – ou não – ser adotadas pelo poder político, no cenário geral da eliminação da hepatite C até 2030”. Mas permite mais, explica o especialista: “posso saber se é possível antecipar esse objetivo através da adoção de determinadas políticas ou se o mesmo será postergado”. Algo que não é difícil já que a plataforma permite comparar resultados entre os países que integram o projeto (Portugal, Espanha, Roménia, Bulgária e Áustria) a que se juntarão em breve o Reino Unido, Alemanha, Espanha, Itália, Austrália e Suíça. Uma coisa é certa, aponta o docente universitário: “Se as coisas se mantiverem como até aqui, vemos que Portugal e a Roménia não eliminam até 2030, ao contrário de Espanha (que deve fazê-lo em 2025 ou 2026) ou da Áustria (um ano ou dois depois). Podemos tentar identificar alternativas e ver o que melhora com cada solução”.

Henrique Lopes alerta, todavia, para a projeção demagógica, que é possível obter “se pudermos todas as políticas no máximo”, situação em que, obviamente, “obteremos os melhores resultados”. “Mas será que os países têm recursos para fazer tudo ao máximo? Possivelmente não. Então podemos testar diferentes soluções e ver se melhora e o que melhora em concreto”, recomenda.

Henrique Lopes sublinha que “uma das vantagens que este tipo de ferramenta oferece é a de mostrar políticas, que alterando medidas de gestão do sistema, permitem atingir o objetivo sem ser preciso aumentar o capital gasto. Incluir o rastreio das grávidas nas guidelines custa quase zero e pode ter impacto. Facilitar o acesso às consultas de especialidade, encontrar os doentes, também”, concretiza.

Auditório António de Almeida Santos

O projeto, que já leva dois anos de existência, é atualizado a cada seis meses, incorporando recomendações e atendendo a críticas expostas pelos utilizadores, que são ativamente chamados a pronunciarem-se sobre a ferramenta.

“Criámos um modelo matemático e um modelo estatístico. Dentro das decisões políticas, qual o peso de cada uma delas? Ou seja, implementar o programa nas prisões, não tem o mesmo peso do que na população geral em comparação com o programa de troca de seringas, por exemplo. Se eu fizer um programa de troca de seringas, quantos hepatocarcinomas é que evito?”. Questões que podem ser respondidas com recurso à nova “calculadora”, salienta Henrique Lopes.

“Temos aqui uma ferramenta onde os conselhos basilares para a doença e onde as políticas públicas estão espelhadas. É um modelo que integra muitos saberes. A cada seis meses são introduzidas novas correções, no sentido de ir aperfeiçoando. Neste momento, o modelo já funciona em cinco países e dentro em breve em muitos mais. E temos tido pedidos de adesão de muitos outros países”.

O projeto LEts End Hep C ancora-se em três grandes eixos: a literacia da saúde (onde foram dados passos importantes mas onde ainda estamos longe do que seria desejável); democracia em saúde, ou seja, a capacidade de interação entre profissionais e não profissionais; cidadania em saúde, isto é, responsabilizar as pessoas pelo estado da sua saúde (é fundamental que as pessoas sejam agentes ativos pela sua saúde). Com base nisto, acabámos por nos destacar da concorrência”, salienta Henrique Lopes.

Presentes na sessão, os diretores dos principais centros de tratamento de Hepatite C do país manifestaram-se pouco otimistas como o atual quadro da situação nacional: Rui Tato Marinho, não tem dúvidas: “Há um plano, há legislação, há dotações orçamentais. Precisamos de começar a salvar vidas e de um plano nacional que comece a funcionar. Precisamos de voltar à estaca zero, ou seja, tratamento para toda a gente e de forma fácil. Ouvimos aqui que no hospital de São João, no Porto, os doentes têm de esperar quase 6 meses para terem acesso à medicação. Não é aceitável. Falta ação política”, denuncia o diretor do serviço de Hepatologia do Santa Maria. Para este responsável, é necessário repetir o feito de 2015 quando, diz, em pouco tempo conseguimos tratar e curar praticamente todos os doentes portugueses, de forma expedita, sem os entraves burocráticos que normalmente acompanham este tipo de processo”. Ora, diz, a verdade é que hoje conseguimos “em 8 ou 12 semanas curar uma doença crónica. Temos recursos humanos e uma indústria que tem estado sempre presente e também temos modelos de intervenção. E não obstante, parece que falta alguma coisa para que as coisas funcionem. Estamos parados e isso não é aceitável. Qualquer doente com cirrose é uma emergência patológica, o risco de cancro aumenta para o dobro ao fim de dois anos. E ainda temos muitos portugueses que não têm acesso ao medicamento”, aponta.

Luís Mendão, Presidente do Grupo de Ativistas em Tratamentos, presente na sessão, revelou: “na esquecida Península de.Setúbal….. [onde há três hospitais] não há ninguém que consiga iniciar tratamento em menos de um ano, o que leva a que metade das pessoas com Hepatite C desistam antes de se tratarem”.

A lógica que tem prevalecido é difícil de entender, aponta o médico: “Os colegas franceses e espanhóis prescrevem e o doente vai à farmácia e leva logo o medicamento. Aqui, consigo receitar na hora – vejam o contrassenso – um medicamento que prolonga a vida três meses (no cancro do fígado, as pessoas vivem em média sete meses). O medicamento custa 40 mil euros por ano e consigo prescrevê-lo na hora. Mas não consigo prescrever na hora um que custa 5 mil euros e que cura a 100%”. Não faz qualquer sentido”, afirma.

Guilherme Macedo, responsável pela consulta do S. João, concorda: “Neste momento, mesmo com recursos limitados, podemos conseguir o objetivo da eliminação da hepatite C. Seria uma vergonha não o fazermos”, afirma, apelando “à nossa tradição secular judaico-cristã, onde pontificam dois sentimentos: culpa e vergonha”. Pela culpa, garante, “estamos bem resolvidos, sobretudo os profissionais de saúde, que têm tido um empenho formidável em relação a este assunto”.

Já relativamente à vergonha, diz, “temos de conversar”. Para o especialista, “será uma vergonha enorme para o nosso país, depois de ter tido as oportunidades que teve, depois ter sido criadas as condições, acabar por não cumprir a meta com que se comprometeu com a OMS”.

Este objetivo, afirma, “é claramente suprapartidário, supragovernamental. Não podemos desperdiçar esta oportunidade”, conclui.

Miguel Múrias Mauritti

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