8 Mar, 2019

Eliminação da Hepatite C passa por estratégias de microeliminação e vontade política

O objetivo é reduzir a incidência do vírus da Hepatite C em 90% e a mortalidade associada em 65% até 2030. Estratégias de microeliminação são fundamentais.

A Agenda para o Desenvolvimento Sustentável, delineada pelas Nações Unidas, para o horizonte 2030, inclui um compromisso global para o combate às hepatites virais. O objetivo é reduzir a incidência do vírus da Hepatite C (VHC) em 90% e a mortalidade associada em 65% até aquela data. Em setembro de 2016, no âmbito do plano europeu de ação contra as hepatites virais da OMS, Portugal comprometeu-se a cumprir esse objetivo, tendo já, anteriormente, assumido o compromisso de eliminar a hepatite C como problema de Saúde Pública, garantindo o acesso universal ao tratamento em fevereiro de 2015.

Um marco, classificado como revolucionário, mesmo a nível global, só possível graças à colaboração da indústria farmacêutica, no caso concreto da Gilead Sciences, responsável pela disponibilização do primeiro medicamento antiviral de ação direta (AAD), eficaz no tratamento da doença, que estabeleceu, em 2015, com o Estado Português, um acordo de fornecimento de dois medicamentos, nos termos do qual, nos casos em que os doentes não alcançassem a cura, a Gilead Sciences oferecia um tratamento.

De lá para cá, foram aprovados 22444 tratamentos, iniciados 20723, com 96.5% de resposta virológica sustentada (RVS), definida como a indetetabilidade da carga vírica RNA‑VHC às 12 semanas (RVS 12) ou às 24 semanas (RVS 24) após o fim do tratamento.

Com o objetivo de fazer um ponto da situação da realidade portuguesa no caminho para a meta acordada com a OMS e traçar rumos para o sucesso da missão, a Gilead Sciences organizou, no início do mês, a reunião HEP.IC Summit 2019, que reuniu especialistas das várias áreas de intervenção nesta problemática.

Sob o Lema “Shaping the Future”, o encontro, que teve como palco o Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, centrou-se no tema da microeliminação, numa perspetiva de acessibilidade por parte dos grupos mais problemáticos e da necessidade de organização da cascata de cuidados de saúde, e de desenvolvimento de estratégias que permitam incluir os doentes inseridos nestes grupos.

Vítor Papão, diretor-geral da Gilead Portugal

A abrir a jornada, Vítor Papão, Diretor-geral da sucursal portuguesa da Gilead Sciences, reiterou o compromisso da empresa nas diferentes áreas de investigação que desenvolve, da infeção por VIH ao tratamento da Hepatite C, sem descurar doenças menos óbvias mas não menos relevantes, como as infeções por filovírus, como a doença pelo vírus Ébola e o vírus Marburg, com elevado potencial pandémico, em que a farmacêutica tem dado passos de enorme relevância, de onde se destaca a disponibilização de um novo pró-fármaco análogo de nucleotídeo, o Remdesivir que se revelou eficaz no tratamento destas duas patologias.

Coube ao Professor Guilherme Macedo, diretor do Serviço de Gastrenterologia do Centro Hospitalar de São João (CHSJ) e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), introduzir o primeiro painel do HEP.PIC, que debateu a atual situação e perspetivas futuras da intervenção local. “Atue localmente para impactar globalmente”, exortava o programa, que integrou um olhar sobre o tratamento da Hepatite C em contextos específicos, designadamente nas prisões e nos indivíduos consumidores de droga por via endovenosa, integrados, ou não, em programas de Redução de Riscos e Minimização de Danos e/ou em tratamento de substituição opiácea de baixo limiar de exigência.

“Todos sabemos que a utilização dos antivíricos de ação direta é eficaz e pode levar à eliminação da hepatite C. Como também todos sabemos que é preciso mais empenho no rastreio sistemático da infeção, no diagnóstico e no tratamento precoce” começou por apontar o especialista, para logo acrescentar: “E precisamos de mais informação epidemiológica, porque a que temos não nos permite saber, exatamente, qual a prevalência em determinados grupos (trabalhadores do sexo, toxicodependentes, entre outros). Não sabemos – e nunca soubemos – ao certo, quantos pessoas estão por diagnosticar e quantas estão por tratar” referiu.

Já se avançou imenso, mas é necessário fazer muito mais, exortou o especialista, testemunhando que “em Portugal já fizemos muito caminho, como os acordos entre as ARS e as associações da sociedade civil, através dos centros de rastreio de base comunitária e das unidades móveis de saúde com o objetivo de promover o diagnóstico e o tratamento precoce, bem como a referenciação atempada nessas populações vulneráveis e de maior risco”.

“Muitos doentes perdem-se no trajeto entre as organizações civis e a chegada aos hospitais”, alertou o Doutor Guilherme Macedo

Mas há mais, a acrescentar ao que já se fez e faz em Portugal. “Temos utilizadores de drogas intravenosas que estão integrados em equipas de tratamento em programas de substituição de opiáceos e que são referenciados às unidades de saúde quando são diagnosticados. Mais recentemente, assistimos a uma revisão da provisão dos cuidados aos estabelecimentos prisionais (EP), o que permitiu estender o tratamento a muitos reclusos”, referiu.

Na opinião do especialista, “o maior obstáculo, neste momento, é a falta de decisão politica e de um plano no terreno”.

Pese o muito já realizado, é possível identificar áreas nas quais é necessário intervir com urgência. É o caso dos imigrantes, muitos dos quais não têm acesso ao SNS e, quando lhes é atribuído um número de utente provisório, só recorrem a ele se estiverem numa situação muito aguda, por receio de se exporem. Por outro lado, salientou, “muitos doentes perdem-se no trajeto entre as organizações civis e a chegada aos hospitais… Há falta de apoio social, de recursos humanos. E dizem-nos que não há recursos financeiros para melhorar estes aspetos”, disse Guilherme Macedo.

 

Problemas na rede de referenciação dificulta acesso de presos a tratamento da Hepatite C

 

Deficiências na rede de referenciação hospitalar adotada pelos serviços prisionais levam a que apenas os reclusos de 20 estabelecimentos prisionais dos 47 existentes em todo o território nacional tenham acesso a cuidados especializados e ao tratamento da infeção por vírus da Hepatite C (VHC).

Numa intervenção no painel dedicado à temática, Rui Morgado, Assistente Graduado de Medicina Geral e Familiar (MGF), a exercer as funções de médico coordenador no Estabelecimento Prisional (EP) do Porto relatou a experiência da implementação do protocolo de colaboração entre a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) e o Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), para acompanhamento dos indivíduos identificados como infetados pelo vírus da hepatite C que necessitam de tratamento especializado.

“Existe uma enorme permeabilidade com o exterior: os presos saem e entram na prisão e têm contactos com o exterior”, disse o Dr. Rui Morgado

Recorde-se que nos termos deste protocolo, assinado em janeiro de 2017, o Serviço de Gastrenterologia do CHUSJ comprometeu-se a deslocar os seus profissionais ao EP do Porto no sentido de realizar as “consultas de especialidade de Doenças do Fígado, promover os procedimentos diagnósticos adequados e facultar a medicação que permita a cura da hepatite C” na quase totalidade dos reclusos tratados para esse efeito, lê-se no documento consultado pelo nosso jornal. Em Março de 2017, este protocolo estendeu-se ao estabelecimento prisional feminino de Santa Cruz do Bispo.

Rui Morgado, que com o Professor Guilherme Macedo, asseguram a coordenação clínica do protocolo, revelou, na conferência HEP.PIC, as dificuldades na sua implementação.

“Falar de dificuldades em alcançar este grupo de modo a conseguir a microeliminação da Hepatite C enquanto problema de Saúde Pública pode parecer, à primeira vista, não ter razão de ser”, começou por apontar o clínico. “Desde logo”, explicou, porque se trata, provavelmente, do único grupo populacional onde sabemos em que local se encontram todos os indivíduos que o integram. “Estão presos entre quatro paredes”, salientou.

Todavia, prosseguiu, não é bem esta a realidade. “A verdade é que, existe uma enorme permeabilidade com o exterior: os presos saem e entram na prisão e têm contactos com o exterior”, salientou, revelando que “ao longo de 2017, entraram e saíram no sistema mais de 5 mil reclusos tendo passado pelas prisões cerca de 20 mil”.

À permeabilidade que se regista no universo das pessoas a cumprir penas de prisão, juntam-se outros “problemas”, difíceis de ultrapassar, como “a deficiente referenciação que hoje vigora no sistema prisional. Temos hospitais universitários a atenderem meia dúzia de reclusos e hospitais distritais com duas ou mais prisões”, aponta Rui Morgado. Por outro lado, diz, “em muitos casos, a atual referenciação não tem em conta as distâncias”.

Pesem os problemas que ainda persistem, os ganhos resultantes deste projeto inovador são de monta: “nos primeiros seis meses, poupámos 600 idas de reclusos ao hospital. Um ganho particularmente importante tendo em conta a logística que envolve esta deslocação”. “Como a hepatite C corre geralmente assintomática por um longo período, o detido acede a ir ao hospital apenas quando se começam a manifestar sintomas,” explicou Rui Morgado. “Eu não conheço reclusos que gostem de ir ao hospital”, testemunhou. “O que não significa que não querem ser tratados. Querem, só que em condições dignas”.

Em Lisboa, Rui Morgado traçou um retrato da comunidade prisional portuguesa a qual, sublinhou, “não é diferente da do resto do mundo: “a maioria são homens, solteiros, portugueses, com uma baixa escolaridade e baixos rendimentos. Indivíduos que, habitualmente, não são utentes ativos da rede dos cuidados de saúde. “Neste universo”, prosseguiu o orador, “há uma grande incidência de VIH e hepatites. Dados de 2016 apontavam para uma prevalência de 12.6% de Infeção por VHC, o equivalente a 1445 reclusos infetados. Uma prevalência que caiu para 10% em 2017 graças ao protocolo com o SNS, segundo mostram os dados da DGRSP. “Muito superior à identificada para a população em geral, que será, de acordo com alguns estudos, de cerca de 0.4%”, salientou o especialista.

Já relativamente ao VIH, no final de 2017, entre as 13.400 pessoas que cumpriam pena em Portugal, 615 (cerca de 4,6%) eram portadores do vírus. Destes 509 estavam em tratamento. Eram 376 em 2016, de acordo com dados da DGRSP.

Outro dos problemas que afetam a prestação de cuidados de saúde em meio prisional é o da falta de condições físicas para essa prestação. A maioria dos EP não dispõem de consultórios, pelo que em muitos casos se recorre a celas adaptadas. Um problema que suscita muitas questões: “como vamos fazer as consultas e fibroscans em celas improvisadas? Como é administrada a terapêutica? Como são os registos clínicos? Existe ligação à rede informática de saúde (RIS)? Todos eles, aspetos relevantes para otimizar a terapêutica e o tratamento”, sublinha Rui Morgado.

O médico Norberto Sousa é responsável por um programa, no Algarve, que leva carrinhas até à comunidade toxicodependente da região

A todos estes constrangimentos soma-se um outro: o processo de contratualização. “Temos notado, no Porto, que, depois da primeira consulta e depois do pedido da medicação, este demora muito a chegar. Isto cria ansiedade nestes indivíduos. Penso o processo deveria ser agilizado de modo a conseguir-se a microeliminação.

 

Hepatite C: Algarve adota estratégia de microeliminação

 

Norberto de Sousa, Assistente Graduado de MGF, responsável pela Equipa Técnica Especializada de Tratamento (ETET) do Sotavento algarvio, trouxe a Lisboa o testemunho do trabalho realizado naquela região. Dos dados apresentados, realça-se o número de pessoas em seguimento na região face ao todo nacional (≈9%), que em 2017 se traduziu em 3128 utentes, das quais 1932 integradas em programas de substituição opiácea.

Tal como já acontecia com a infeção por VIH, a Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências da ARS Algarve, onde se integra a ETET do Sotavento, tem em funcionamento um programa de Encaminhamento e Articulação com a consulta de Gastrenterologia do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), nas situações de deteção de AcHCV+, que abrange os 16 conselhos da região. Uma missão, que, explicou, vai ao encontro da orientação do Comité de Peritos da OMS que fixou como principal objetivo no campo das toxicodependências prevenir ou reduzir a incidência e severidade dos problemas associados ao uso não médico de drogas, entre os quais emerge, como problema major de saúde pública, a infeção por VHC.

Relativamente à prevalência da infeção na população seguida em programas de substituição opiácea, ela é de 46%, um valor que embora muito elevado, compara com realidades semelhantes em outras regiões do país, revelou o especialista.

Através deste programa, explicou, “pretende-se diminuir o número de deslocações desnecessárias aos serviços de saúde e ir ao encontro dos doentes nos locais onde mais frequentemente se deslocam, como as carrinhas de suporte aos programas de substituição opiácea. Tendo em conta este fator, adotou-se uma estratégia de administração combinada de terapêuticas nestes doentes. “Na verdade, acaba por ser uma Toma de Observação Direta (TOD), essencial para o sucesso do tratamento” refere Norberto de Sousa.

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