A Medicina, enquanto ciência, tem feito progressos notáveis, no plano do conhecimento, da tecnologia, da regulamentação e em tantos outros.
A forma como os doentes são hoje atendidos e tratados tem permitido uma resposta favorável a um número crescente de condições clínicas, uma redução nas complicações e nos tempos de internamento, um retorno mais rápido à vida activa e tudo isto tem contribuído para sociedades mais saudáveis, com maiores e melhores esperanças de vida e, de um modo geral, mais felizes.
Mas, como em tudo na vida, existe sempre um lado menos positivo nesta evolução e é sobre ele que venho agora reflectir.
O facto da Medicina se ter tornado tão técnica, tão tecnológica, mais rigorosa e mais segura foi criando na mente das populações a noção de uma infalibilidade quase absoluta. Tudo é fácil, os exames revelam tudo, os medicamentos curam tudo, as cirurgias correm sempre bem, não existem complicações, tudo está garantido.
O acesso simples à informação tornou as pessoas mais informadas sobre os temas da saúde, o que é muito bom, mas, em demasiados casos, cria nos doentes uma falsa noção de que sabem tanto ou mais do que o seu médico, que o podem questionar, confrontar e pressionar em determinada direcção. E isto é mau. Mau pelo tempo que se perde a corrigir as percepções erradas, a explicar as opções tomadas e, sobretudo, porque esta sensação de que os médicos podem estar errados provoca uma erosão num dos pilares da actividade médica: a relação médico-paciente.
Perante estas duas realidades, a noção da infalibilidade da Medicina e a constante confrontação dos actos médicos versus a informação massivamente disponível, a tolerância dos doentes face a uma complicação, uma dúvida de diagnóstico ou um insucesso terapêutico tem-se vindo a reduzir, com o consequente aumento no número de reclamações e de litígios.
É bem conhecida a realidade norte-americana onde existem advogados “especializados” em detectar ou explorar erros médicos e obter indemnizações milionárias, sendo essa actividade publicitada em todos os media (televisão, outdoors, etc.). E essa tendência, fruto do que escrevi antes, tem-se vindo a disseminar.
A Medicina Defensiva surge como reacção a esta nova realidade. Os médicos, para evitarem conflitos e para não se verem envolvidos num meio que lhes é absolutamente estranho (os tribunais), colocam de lado a forma tradicional de praticar medicina, na qual a avaliação dos doentes é conduzida em função dos sinais e sintomas, o tratamento mais apropriado é instituído e os passos seguintes vão sendo ajustados em conformidade, para uma prática totalmente contrária ao mais elementar bom-senso e que consiste na requisição dos exames necessários, acrescidos de outros (just in case…), da prescrição de medicamentos mais fortes (como os antibióticos) em vez de um escalonamento terapêutico (just in case…) e da proposta de cirurgias em vez de uma vigilância periódica (just in case…).
Consequências?
Os custos da Medicina, que já têm aumentado face à evolução tecnológica subjacente, tornam-se ainda mais elevados por se requisitarem exames dispendiosos e, sobretudo, desnecessários.
Os doentes tendem a ser expostos a um maior risco de complicações e/ou efeitos secundários associados a cirurgias que podiam ser proteladas, antibióticos espectro de acção mais amplo ou outras formas de tratamento.
Inversamente, perante casos mais complexos ou imprevisíveis, os médicos poderão optar por evitar procedimentos arriscados ou, mesmo, por evitar receber doentes com casos complicados.
Tudo isto se traduz numa Medicina de pior qualidade e numa degradação da relação médico-doente.
Em alguns estudos publicados sobre a prevalência da prática de uma Medicina Defensiva, verifica-se que o número de médicos que solicitam exames por uma questão de segurança e sem uma razão clinicamente válida rondava os 90% e cerca de 40% não realizavam procedimentos de risco elevado.
A Medicina Defensiva surge, pois, num contexto de uma crise profunda na relação entre os médicos e a sociedade. Não só se criou a ilusão de que tudo é detectável e tratável, como se atribui com frequência aos médicos um comportamento oportunista, que privilegia os seus interesses em detrimento do interesse dos seus doentes.
Mas, como bem sabemos, a Medicina não é, nunca foi e provavelmente nunca será uma ciência exacta, onde tudo é preto ou branco, positivo ou negativo, certo ou errado. Os protocolos, a gestão de risco, a experiência clínica aperfeiçoam a Medicina, limam arestas mas, na sua essência, as decisões médicas continuam a ser tomadas com base em dados imperfeitos, incompletos e imprevisíveis.
Por mais exames que se requisitem, nunca existirá a garantia absoluta de um diagnóstico rigoroso e, pelo contrário, o risco de se identificarem falsos-positivos, a partir desse momento expostos a ainda mais exames e tratamentos desnecessários, tenderá a aumentar.
Vemos, pois, que a Medicina Defensiva não é boa nem para os doentes nem para os médicos. Os seus efeitos nefastos são diversos, aumentando custos, criando riscos e erodindo a relação chave de confiança que deve presidir a cada acto médico.
Possíveis soluções?
Uma melhor gestão dos tempos de consulta permitirá existir mais tempo para avaliar cada caso e decidir os melhores exames, em vez de criar a tendência de pedir um “pacote” protocolado de exames, muitos dos quais irrelevantes naquela situação concreta.
Uma mudança de atitude face ao erro médico, não no sentido da sua descriminalização mas da sua avaliação no plano civil e pelas Ordens Profissionais permitiria mudar a ênfase da punição para a identificação e correcção de erros estruturais, com enorme valor preventivo.
A educação do público sobre os perigos associados ao acesso a informação sobre saúde na internet é essencial, do mesmo modo que os media deveriam lidar com bom senso na cobertura de casos relacionados com presumíveis erros médicos, no sentido de não enfraquecerem a confiança das populações nos seus médicos, aspecto crucial para um tratamento eficaz.
Trata-se, portanto, de um esforço que a todos deve envolver, no sentido de se permitir que os médicos exerçam a sua profissão livres de constrangimentos, focados na sua experiência e tendo como único propósito a saúde e bem-estar dos seus pacientes.
Como sempre, máxima liberdade e máxima responsabilidade…
Em 2013 Sekhar* escrevia “a chamada profissão divina perdeu a sua glória pela intrusão de um demónio chamado medicina defensiva”
A Medicina não será divina nem a Medicina Defensiva será demoníaca, mas que é importante repensar tudo isto não tenhamos dúvidas…
* M Sonal Sekhar e col., Defensive Medicine: A Bane to Healthcare, Ann Med Health Sci Res. 2013 Apr-Jun; 3(2): 295–296.
Texto escrito segundo a anterior grafia