E porque não?
Bazófias
“Chamar veado ao cavalo”
Provérbio chinês
Há coisa de ano e picos, enormes cartazes propagandeavam o acréscimo de não sei quantos mais milhares de portugueses com médico de família (MF), desde que o governo tomara posse. Aos governos não basta serem eficientes: devem mostrar que o são. Portanto, têm o direito (quase o dever) de dar a conhecer os seus êxitos. Contudo, no caso presente os méritos não se podem atribuir a um qualquer governo recém chegado, mas sim aos anteriores. Sabendo-se que o internato de medicina familiar dura quatro anos, o impacto duma aposta na formação só se faz sentir para lá duma legislatura. Dito de outra forma: cada governo que chega colhe os frutos da política dos precedentes e prepara o terreno para os lhe sucederão. Felizmente os sucessivos governos (e o atual não é exceção) têm mantido esta política louvável de investir na formação de MF.
Permita-se um parêntese para recordar o nome do ministro que, há mais duma década, porfiou no aumento de vagas para o internato complementar de medicina familiar, perante a oposição dos apparatchik do ministério e da cúpula da OM: Correia de Campos. Um ministro mal amado pelo povo, mas a quem os portugueses podem agradecer o aumento de utentes com MF.
Em conclusão: os ditos cartazes eram má propaganda. O mais grave é que, como veremos, não basta receber um contingente avantajado de especialistas para aumentar a cobertura de utentes com MF atribuído: há que cativá-los. Erros e má fortuna podem redundar em amargas desilusões.
Promessas
“Não deves gabar a colheita no dia de lavrar, só na eira é que se vê” – Anónimo “Instrução do Papiro Chester Betty IV”
Recentemente, o secretário de estado da saúde declarava, candidamente, que não dormiria descansado se, até ao fim da legislatura, não tivesse atribuído MF a cada cidadão. Das duas uma: ou renega o compromisso, ou olheiras cavadas se lhe pregarão no rosto até ao dia do Juízo Final!
Esta promessa teria cabimento na primavera de 2016. Quem na altura consultasse o portal da reforma-SNS (que disponibilizava já então informação relevante e vasta, embora nem sempre tão atualizada quanto seria desejável), poderia verificar que comparando os contingentes de internos que acabariam sua formação, com os dos profissionais com reforma prevista, obtinha um saldo anual positivo a favor dos primeiros. Partindo do deficit de MF, calculado nessa data, podia antever-se a sua redução anual e, com otimismo (demasiado otimismo mesmo, como veremos), prever o fim da penúria em 2018 ou 2019. Neste cálculo admitia-se que emigrantes, reformas antecipadas, falecimentos e saídas do SNS, fossem compensadas pelos imigrantes, colegas a manterem-se ao serviço após idade de aposentação e pelos aposentados que regressassem às fileiras com contratos.
Porém, chegados a 2018, constatamos que as previsões não passaram de uma miragem. Asseverar que o problema se resolverá até ao fim da legislatura é insistir numa mera crença, sem qualquer ponta de realismo.
O fiasco
(…) falhar não é fatal: é a coragem para continuar que conta. – W, Churchill
Revisitemos o portal da reforma e poderemos concluir que as tais antevisões de há dois anos não se verificaram, nem se verificarão.
Numa análise cuidada dos vários quadros, são percetíveis algumas incongruências entre as várias secções do portal apresentadas, justificáveis pela diferença de datas de extração dedos.
A incoerência mais preocupante está escarrapachada nas informações insertas nos quadros “equipes saúde familiar ” e “gestão de recursos humanos”. Neste, com dados extraídos em novembro de 2017, previa-se meio milhão de portugueses sem MF no início de 2018. Porém, no quadro “equipes saúde familiar”, com dados de 30 abril deste ano, contabilizavam-se de facto 700.000. Debrucemo-nos sobre a evolução da população sem MF. Em dezembro de 2015 havia mais de um milhão de portugueses nesta categoria, em dezembro 2016 cerca de 760.000 e em idêntico mês do passado ano, 707.000.
Salta à vista que algo correu mal em 2017. De 2015 para 2016 quase um quarto de milhão de portugueses passaram a ter MF, mas de 2016 para 2017 pouco mais de cinquenta mil tiveram esse privilégio, apesar do contingente de internos que concluíram a especialidade ter aumentado.
Porquê esta quebra? É do conhecimento público que cerca de cinquenta MF recém formados (quase um em cada sete), optaram por procurar emprego fora do SNS. Segue-se a pergunta dum milhão de euros: porque o fizeram? Seguramente que nem a “celeridade” da colocação destes jovens, nem a “excelência” do sistema informático do SNS, seriam argumentos que evitassem esta deserção massiva. Mas deixemo-nos de especulações e permita-se-nos a sugestão a quem de direito: não seria mesmo de investigar seriamente as causas deste êxodo?
Voltemos à promessa de atingir a Terra Prometida neste auspicioso ano de 2018 e debrucemo-nos sobre o quadro “gestão de recursos humanos”. Refere que as necessidades de MF, contabilizadas em novembro de 2017, eram de 524 médicos. Ora, segundo o mesmo portal prevê-se que terminem o internato 428 profissionais e que se aposentem 219. Não contando sequer com os que preferirão procurar outros ares que não os do soturno SNS, contabiliza-se um saldo de 200 MF, bem longe do meio milheiro necessário. Grande maravilha se anuncia nas margens do Mar da Palha: a multiplicação dos MF, dois milénios após a outra, lá para as bandas da Galileia! Ou talvez venha aí a expansão, não do Império, mas das listas de utentes para dimensões faraónicas.
Em resumo: a promessa de acabar com utentes sem MF até ao fim da legislatura trata-se duma gafe de todo tamanho.
Adiante!