Glaucoma: diagnóstico precoce é fundamental

O glaucoma é a primeira causa de cegueira não reversível em todo o mundo. Em Portugal, afeta cerca de 200 mil pessoas – metade delas não sabe que tem a doença. Em entrevista ao Saúde Online, na Semana Mundial do Glaucoma, o médico oftalmologista José António Dias alerta para a ausência de sintomas na fase inicial da doença e destaca a importância de um diagnóstico precoce.

O que é o glaucoma?

José António Dias (JAD) | A definição de glaucoma refere uma neuropatia ótica, crónica e progressiva com alterações típicas a nível do nervo óptico e do campo visual. Assim sendo e dum ponto de vista mais prático, podemos afirmar que a palavra glaucoma é uma designação genérica que engloba um conjunto de patologias que provocam danos específicos e irreversíveis ao nervo ótico, levando a uma posterior perda de visão. O tipo mais comum  em Portugal é o glaucoma de ângulo aberto, outros menos comuns são o glaucoma de ângulo fechado e glaucoma de baixa pressão.

Porque tem o glaucoma o epíteto de “ladrão silencioso da visão”?

JAD | Na grande maioria dos casos, o glaucoma desenvolve-se lentamente e é assintomático durante a maior parte da sua evolução. Com o tempo, a visão periférica do doente com glaucoma começa a ficar comprometida e ocorre um estreitamento progressivo do campo visual, evoluindo para a visão tubular (ou central) e mesmo a cegueira. Portanto, se não houver tratamento adequado ocorrerá uma diminuição grave e irreversível da função visual, que não é corrigível com lentes ou cirurgia, interferindo muito significativamente na qualidade de vida do individuo.

Quais são as causas desta doença?

JAD | O tipo mais frequente de glaucoma é o glaucoma primário de ângulo aberto, representando a grande maioria dos casos registados em Portugal, que normalmente começa sem sintomas e demora muitos anos para causar um dano visual percetível. Se a PIO for demasiado elevada, pode promover a compressão e causar dano nas estruturas oculares, nomeadamente a cabeça do nervo ótico. Por outro lado, outros fatores, como perturbações no fluxo sanguíneo podem interagir com a PIO e afetar o nervo ótico.

Numa proporção significativa dos casos de glaucoma primário de ângulo aberto regista-se uma PIO estatisticamente normal. Esses casos são chamados de glaucoma de  baixa pressão. Devido ao facto de os exames ao nervo ótico nem sempre serem realizados juntamente com as medidas de PIO no exame de rotina, o glaucoma de baixa pressão pode ser mais tardiamente diagnosticado, muitas vezes em fases adiantadas da doença, já com um compromisso muito importante da função visual.

Outro tipo é o glaucoma de ângulo fechado. Pode ser agudo, caracterizado por um aumento súbito da pressão intraocular. Isto ocorre em olhos predispostos quando a  íris  bloqueia a malha trabecular e provoca um rápido e significativo aumento da PIO. Esta forma é acompanhada de dor e redução da acuidade visual, podendo levar à perda visual irreversível num curto período de tempo. É considerada uma situação de emergência oftalmológica e requer tratamento imediato. Este tipo de glaucoma pode também apresentar-se de forma crónica e insidiosa ou surgir com crises subagudas, mais ligeiras e intermitentes.

Glaucoma pode também ocorrer como uma complicação de várias condições oculares, como sejam a cirurgia, tumores, inflamações, traumatismos oculares, retinopatia diabética, ou pelo uso excessivo de medicamentos, por exemplo, corticoides. Estas situações são designadas de glaucomas secundários.

Deve ser referido também o glaucoma congénito, que é uma doença genética rara. O tratamento é a cirurgia. Normalmente a criança já nasce com sinais da doença, adquirida durante período de gestação decorrente de má formação nos olhos.

Existem dados epidemiológicos que permitam traçar um retrato da realidade portuguesa (incidência, prevalência e distribuição geográfica)?

JAD | Aplicando as taxas de incidência e prevalência da doença aos dados referentes a população portuguesa, podemos considerar que mais de 100 mil portugueses sofram de glaucoma, sendo previsível um aumento da incidência devido ao envelhecimento da população no nosso país.

Existem dados da prevalência a nível mundial?

JAD | Estima-se que os diferentes tipos de glaucoma afetam perto de 80 milhões de pessoas em todo o mundo e sendo uma doença progressiva que se não for adequadamente tratada conduz a um dano irreversível, o glaucoma representa uma das principais causas de cegueira a nível mundial. Calcula-se em mais de 9 milhões, o número de indivíduos cegos por glaucoma em todo o mundo.

 

“Na grande maioria dos casos, o glaucoma desenvolve-se lentamente e é assintomático durante a maior parte da sua evolução”

 

Os dados conhecidos e a prática clínica permitem concluir que existe subnotificação do número de casos? Se sim, como é que isso se explica?

JAD |  Devido à progressão lenta e assintomática da doença, é reconhecido que, mesmo nos países mais desenvolvidos, apenas perto de 50% dos portadores de glaucoma sejam diagnosticados e tratados. Portanto, podemos afirmar que o glaucoma representa um problema não apenas da área da oftalmologia mas também de saúde pública.

É possível prevenir o aparecimento desta doença? Como?

JAD | De um ponto de vista teórico, a prevenção passa pela identificação dos factores de risco e controlar aqueles em que podemos ter intervenção terapêutica, ajudando a prevenir a doença. Importante é o diagnóstico precoce e a instituição de um tratamento adequado.

Existem fatores de risco para esta condição?

JAD | Existem vários factores de risco identificados, alguns com grande evidência científica como sejam a idade, a PIO elevada, os indivíduos de raça negra, a história familiar de glaucoma, a miopia elevada e a menor espessura central da córnea. Existe ainda outros, ainda cuja significância ainda não é completamente entendida, como a desregulação vascular, a enxaqueca, a diabetes e a apneia do sono, entre outros.

Verificam-se diferenças de incidência em função do género?

JAD | Existe maior risco por parte do género feminino para o glaucoma de baixa pressão e para o de ângulo fechado.

Quais as faixas etárias mais afetadas?

JAD | A incidência de glaucoma aumenta com a idade. Pensa-se que em parte devido ao aumento da resistência ao escoamento do humor aquoso por esclerose da malha trabecular, o que provoca um aumento da PIO e por outro lado, a menor perfusão do nervo ótico que ocorre devido às alterações circulatórias sistémicas que decorrem do processo de envelhecimento.

Existe em Portugal algum programa de diagnóstico de âmbito nacional?

JAD | Em Portugal existem rastreios pontuais, não existindo um programa organizado de avaliação à população. A avaliação do risco ou diagnóstico de glaucoma faz parte da consulta de oftalmologia. É avaliada a PIO, além do exame do nervo óptico, em busca de sinais de suspeição. Se houver qualquer suspeita de glaucoma serão realizados exames complementares (estruturais e funcionais), de forma a excluir a patologia, ou então, enquadrar a situação como apresentando risco importante de glaucoma ou confirmar o seu  diagnóstico. Neste momento será decidido a eventual terapêutica a realizar e estabelecer um plano de seguimento.

Quais os principais motivos apontados para a ausência de rastreios regulares? Quais crê serem os motivos que levam as pessoas a não fazerem rastreios?

JAD | Devido à incidência da doença, os rastreios de larga escala não apresentam uma boa relação custo/beneficio. Poderia ser pensado um plano de rastreio aos indivíduos com factores de risco de glaucoma, mas aqui surge o problema de saber quais são esses candidatos. Assim, penso que é mais viável esclarecer a população sobre quais os factores de risco para a doença, com campanhas na comunicação social e outros tipos de divulgação. Por diversas ocasiões a Sociedade Portuguesa de Oftalmologia, através do Grupo Português de Glaucoma tem realizado ações de divulgação e alerta.

Como é que se explica a discrepância entre a importância da visão e a pouca relevância que esta área tem nos programas públicos de saúde?  

JAD | Como sabemos existem múltiplas patologias crónicas, progressivas e que representam também um importante problema de saúde pública. Penso que devido ao carácter insidioso e muitas vezes assintomático do glaucoma, ela não tem o impacto que apresentam por exemplo a diabetes, os diversos tipos de neoplasias ou as doenças degenerativas do Sistema Nervoso Central.

Se considerarmos o impacto do glaucoma no indivíduo, no seu entorno familiar e na sociedade em geral, avaliando os seus custos económicos e sociais, torna-se evidente a necessidade da criação de campanhas de divulgação e sensibilização sobre os factores de risco. Desta forma poderia ser realizado um diagnostico precoce, minimizando assim as graves consequências da doença.

O que leva os doentes a perderem a visão na sequência de um glaucoma?

JAD | Os doentes de glaucoma perdem visão por três motivos principais. Primeiro, dada a natureza assintomática da doença, o atraso no diagnóstico. Muitos doentes são observados pela primeira vez já com um dano importante da função visual e o nosso papel fica limitado a tentar preservar a  pouca visão que resta.

Em segundo lugar, pela forma agressiva como por vezes a doença evolui ou pelo mau controle da mesma, muitas vezes relacionado com falhas no seguimento.

Por último, mas não menos importante, o facto que dada a não presença de sintomatologia evidente, muitos doentes não cumprem a terapêutica proposta levando assim a progressão da doença para uma fase adiantada, com danos irreversíveis na visão e com diminuição da sua qualidade de vida. Frequentemente os doentes não se queixam da doença, queixam-se do tratamento (“as gotas ardem”, “esqueço-me”, “são difíceis de colocar”, etc.). Para minimizar estes factos, é importante esclarecer o doente e seus familiares sobre os riscos da doença e da importância do cumprimento do tratamento, estabelecer um regime terapêutico simples e eficaz e garantir o correto seguimento.

Quais são os ganhos resultantes de uma intervenção precoce no tratamento?

JAD | Como foi anteriormente referido, na grande maioria dos casos o glaucoma é assintomático até uma fase adiantada da doença. Se o diagnóstico for feito numa fase inicial, em que os danos na função visual são mínimos, a instituição de uma terapêutica adequada permite diminuir de forma muito significativa a progressão da doença, minimizando assim a disfunção visual, mantendo a qualidade de vida dos doentes e limitar os custos sociais e económicos associados ao glaucoma.

 

“Rapidamente esta classe [das prostaglandinas] transformou o protocolo de tratamento dos doentes com glaucoma”

 

A quem deve o doente com suspeita de glaucoma recorrer em primeira instância? No caso de crianças, quem deve estar atento aos sinais?

JAD | O Oftalmologista é aquele que tem conhecimento e capacidade técnica para estabelecer (ou excluir) o diagnóstico de glaucoma e implementar a terapêutica adequada. Outros profissionais na área da saúde têm um relevante papel no esclarecimento e na identificação de eventuais factores de risco, devendo encaminhar estes suspeitos de glaucoma para a consulta de Oftalmologia.

No caso do glaucoma congénito a suspeita normalmente surge na observação pelo Pediatra, que encaminha imediatamente para a consulta especializada.

 

 

 

 

 

Sabendo que o glaucoma não tem ainda cura, estão, todavia, disponíveis tratamentos. Que intervenções terapêuticas/outras intervenções são recomendadas?

JAD | Diminuir a pressão intraocular até o momento é o principal tratamento. A PIO pode ser controlada, recorrendo na maioria dos casos a terapêutica médica, geralmente com colírios hipotensores. Caso seja necessário, uma cirurgia poderá ser indicada, tanto a cirurgia a laser, quanto a tradicional. Outra forma de intervenção consiste na melhoria das condições de perfusão do nervo ótico. Atualmente começam a surgir terapêuticas que se propõem proteger as fibras nervosas que compõem as vias óticas. Estão em estudo novos medicamentos e novas formas de apresentação que irão seguramente permitir aumentar o arsenal terapêutico de que dispomos.

Qual a importância (à época) do aparecimento das primeiras prostaglandinas e associações fixas na terapia com colírios?

JAD | O aparecimento em Portugal da primeira prostaglandina (o latanoprost) representou o surgimento duma nova classe terapêutica com maior eficácia, melhor tolerabilidade sistémica e de utilização simples  (apenas uma vez ao dia). Rapidamente esta classe transformou o protocolo de tratamento dos doentes com glaucoma e hipertensão ocular, sendo ainda hoje as drogas mais prescritas para obter um efeito hipotensor ocular.

Mais recentemente surgiram combinações fixas, isto é, colírios que combinam duas substâncias ativas, permitindo assim um maior efeito terapêutico instilando um menor número de gotas, o que se reflete numa melhor comodidade e maior adesão ao tratamento.

O acesso às novas tecnologias – diagnóstico, terapêutica – é de alguma forma condicionado?

JAD | A tecnologia atualmente existente para o diagnóstico de glaucoma é baseada na análise estrutural do nervo ótico e camada de células ganglionares da retina e no estudo funcional. Este tipo de equipamentos está amplamente disseminados, tanto no sector público como no privado, pelo que considero não existir qualquer condicionamento ao seu acesso. Quando avaliamos o acesso a solução cirúrgica, a maioria dos hospitais e clínicas apresentam condições humanas e técnicas para realizar cirurgias de glaucoma.

Evidentemente, técnicas cirúrgicas mais inovadoras, ainda numa fase de estudo, apenas se encontram em alguns centros mais especializados. Pelo referido, penso ser justo afirmar que Portugal possui uma excelente capacidade para o diagnóstico e tratamento de glaucoma.

 

O conteúdo e as afirmações expressas nesta publicação são da exclusive responsabilidade do entrevistado.

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