5 Mai, 2017

“O desafio é fazer chegar o melhor regime terapêutico a cada um dos doentes “

Nomeado como Centro de Referência para o Tratamento da Hipertensão Pulmonar em 2012, o Hospital Garcia de Orta faz parte da rede nacional composta por quatro centros. A responsável pela Unidade de Hipertensão Pulmonar, Maria José Loureiro, defende que a multidisciplinaridade é fundamental para o funcionamento de um centro de referência, sendo este um “ponto forte” do Hospital Garcia de Orta.

Saúde Online | Quanto Falamos de Hipertensão Pulmonar, estamos a falar de uma ou de múltiplas condições?

Maria José Loureiro | A Hipertensão Pulmonar (HP) pode ocorrer na forma isolada ou associada a diferentes entidades clínicas. Numa pequena percentagem dos casos a hipertensão pulmonar ocorre de forma isolada – hipertensão arterial pulmonar idiopática e hipertensão arterial pulmonar hereditária. No entanto, na maioria dos casos, estamos a falar de múltiplas condições clínicas que se associam ao desenvolvimento de hipertensão pulmonar. Hoje em dia, por necessidade de classificação, identificamos 5 grandes grupos de hipertensão pulmonar que partilham semelhanças em termos fisiopatológicos, expressão clínica e abordagem terapêutica.

SO – Quais as principais causas da HAP?

MJL – A hipertensão arterial pulmonar poderá ocorrer de forma isolada, de forma hereditária, associada ao consumo de fármacos (nomeadamente anorexígenos) ou, mais frequentemente, associada a outras doenças – cardiopatia congénita, doença do tecido conjuntivo (esclerose sistémica, lúpus eritematoso sistémico, artrite reumatóide), infecção a VIH e doença hepática crónica. Na grande maioria dos casos, a hipertensão pulmonar surge como consequência de doença cardíaca ou de doença pulmonar com significado clínico, previamente diagnosticada ou não. A hipertensão pulmonar pode surgir ainda como consequência de tromboembolismo pulmonar, nomeadamente nos casos em que este é recorrente ou de maior gravidade.

SO – A HAP idiopática é frequente?

MJL – A hipertensão arterial pulmonar idiopática não é uma doença frequente, permanecendo, no entanto, subdiagnosticada. Estima-se que na Europa a prevalência da hipertensão arterial pulmonar seja de 15 a 60 casos por milhão de habitantes e a incidência de 5 a 10 casos por milhão de habitantes por ano, sendo que metade destes doentes correspondem às formas idiopática, hereditária ou induzida por fármacos.

SO – Quais os sinais e sintomas de “alerta” a ter em conta?

MJL – Os sintomas não são muito específicos nos estadios iniciais da hipertensão pulmonar. Os mais comuns são a fadiga, a dificuldade respiratória (dispneia) e a incapacidade para a realização de esforços. Com o agravamento da doença verifica-se um agravamento progressivo da dificuldade respiratória e da capacidade para realizar esforço, inicialmente apenas com o esforço (dispneia de esforço) mas mais tarde em repouso (dispneia em repouso). Outros sinais e sintomas incluem a dor torácica, as palpitações, as tonturas e o desmaio, o edema dos tornozelos ou dos pés e o tom azulado da pele, principalmente dos lábios.

SO – Existem grupos/fatores de risco de desenvolvimento da doença?

MJL – Até ao momento, a hipertensão pulmonar foi associada ao consumo de determinados fármacos (nomeadamente anorexígenos), à doença do tecido conjuntivo (esclerose sistémica, lúpus eritematoso sistémico, artrite reumatoide), à doença cardíaca congénita, à infecção a VIH, à doença hepática crónica, à anemia falciforme e à embolia pulmonar. Determinados grupos de doentes com doença cardíaca e/ou doença pulmonar também desenvolvem hipertensão pulmonar como consequência destas.

SO – Existem dados de incidência/prevalência da doença entre nós?

MJL – Não existem, à data, dados que permitam retratar a realidade epidemiológica nacional. Seria desejável que a hipertensão pulmonar fosse enquadrada do ponto de vista epidemiológico num registo nacional que permitisse conhecer a realidade epidemiológica nacional.

SO – Há alguma “particularidade” portuguesa?

MJL – Na população adulta encontramos uma proporção superior de doentes com hipertensão pulmonar associada a cardiopatia congénita em comparação com outras populações, resultado do acesso limitado a cirurgia cardíaca na idade apropriada para a sua correcção antes dos anos 80. Estima-se que essa diferença venha a diminuir face à melhoria dos cuidados de saúde infantil e acesso a especialistas de cardiologia pediátrica e cirurgia cardíaca desde os anos 80. Por outro lado, o número de casos de hipertensão pulmonar associada a anorexígenos é muito reduzido na população portuguesa.

SO – Como é diagnosticada a doença?

MJL – Uma vez que os sintomas da HP não são específicos, o atraso no diagnóstico pode ser de até 2 anos. O diagnóstico precoce é essencial, uma vez que o atraso no início de tratamento pode ter um impacto negativo na sobrevivência e na qualidade de vida. A suspeita de diagnóstico de hipertensão pulmonar surge após a realização de um ecocardiograma. Uma vez levantada a suspeita o doente é referenciado para um dos quatro centros de hipertensão pulmonar no país, onde a investigação é complementada com outros exames e o diagnóstico é confirmado pela realização de cateterismo.

SO – Verifica-se subdiagnóstico desta condição?

MJL – O diagnóstico é não só tardio mas também difícil de concretizar. A Sociedade Portuguesa de Cardiologia, a Associação Portuguesa de Hipertensão Pulmonar e os quatro centros de referência têm feito um enorme esforço no sentido de divulgar a doença e formar os diversos intervenientes no sistema de saúde no sentido de aumentar a probabilidade de diagnóstico correcto e atempado da hipertensão pulmonar. Mais do que ausência de diagnóstico ou diagnóstico tardio assiste-se a uma falta de referenciação dos doentes com suspeita de hipertensão pulmonar para os centros de referenciação, por forma a receberem orientação e tratamento adequados.

SO – Tendo em conta os critérios “apertados” da candidatura a “Centro de Referência para o Tratamento da Hipertensão Arterial Pulmonar”, como encararam a candidatura a esta “Competência”? Foi uma tarefa difícil?

MJL – A Unidade de Hipertensão Pulmonar do Hospital Garcia de Orta, inserida no Serviço de Cardiologia, já cumpria todos os requisitos para o diagnóstico, tratamento e seguimento de doentes com hipertensão pulmonar aquando da candidatura de 2012. As competências diferenciadas já tinham sido instaladas e desenvolvidas previamente à candidatura, pelo que a tarefa de candidatura foi um processo natural e consequência do trabalho desenvolvido desde 2003.

SO – Quando “conseguiram” a classificação como “Centro de Referência”?

MJL – A nomeação enquanto “Centro de Referência para o Tratamento da Hipertensão Arterial Pulmonar” foi obtida em 2012 e novamente confirmada por despacho publicado em Diário da República em 2014 (Despacho n.º 3851/2014).

SO – A multidisciplinaridade e experiência comprovada na doença foi um obstáculo?

MJL – Uma das características essenciais ao funcionamento de um centro de referência para o tratamento da Hipertensão Pulmonar é a multidisciplinaridade, isto é, a colaboração acessível e permanente entre várias especialidades – Cardiologia, Pneumologia, Medicina Interna, Reumatologia, assim como a colaboração entre vários grupos profissionais – médicos, enfermeiros, técnicos de cardiopneumologia, farmacêuticos, nutricionistas, assistentes sociais. A operacionalização da colaboração entre as diversas especialidades e grupos profissionais sempre foi, desde o início da atividade no Hospital Garcia de Orta, um dos seus pontos fortes.

SO – Como é composta a vossa equipa?

MJL – A Unidade de Hipertensão Pulmonar do Hospital Garcia de Orta está integrada no Serviço de Cardiologia e partilha todos os recursos deste serviço. A equipa da unidade é presentemente composta por dois cardiologistas, um internista, um reumatologista, dois técnicos de cardiopneumologia e cinco enfermeiros. A unidade tem ainda o apoio e colaboração de uma psicóloga e uma nutricionista.

SO – E é funcional 24h por dia durante todo o ano?

MJL – Funciona 24h/24h durante dos 365 dias do ano em regime presencial e conta com apoio telefónico complementar para todos os doentes seguidos na unidade.

SO – Um centro de referência é, também, por excelência, um centro com potencial de investigação. No vosso serviço esta vertente é valorizada?

MJL – A unidade tem participado em vários ensaios multicêntricos internacionais e tem publicado vários trabalhos de investigação original. Presentemente, participa em três ensaios clínicos e dois registos multicêntricos internacionais. Apresentámos ainda oito trabalhos de investigação original no último Congresso Português de Cardiologia, em Abril, e dois trabalhos de investigação original no Congresso Europeu de Insuficiência Cardíaca, também em Abril.

SO – É possível marcar um “ponto de viragem” no tratamento da doença com efeitos marcantes no prognóstico?

MJL – Fruto do dinamismo da investigação biomédica têm sido desenvolvidas várias opções terapêuticas inovadoras nesta área com impacto muito significativo no prognóstico dos doentes. Neste momento, existem diversos tratamentos para a hipertensão arterial pulmonar e hipertensão pulmonar tromboembólica crónica. Desde o tratamento com medicação oral de diferentes grupos farmacoterapêuticos, medicação inalada, subcutânea ou endovenosa, até tratamentos de intervenção por cateterismo e cirurgia cardiotorácica em casos selecionados. O regime de tratamento é individualizado e pode compreender uma ou mais opções terapêuticas simultaneamente. O desafio é fazer chegar o melhor regime terapêutico a cada um dos doentes diagnosticados, uma vez que o acesso aos tratamentos inovadores tem sido revestido de vários obstáculos nos últimos anos.

SO – O transplante pulmonar é uma opção?

MJL – O transplante pulmonar não representa a cura para a hipertensão pulmonar, mas sim o prolongamento adicional da vida dos doentes que já percorreram todas as alternativas terapêuticas para a hipertensão pulmonar que antecedem o transplante.

SO – Verificam-se, no tratamento da HAP as assimetrias regionais que marcam outras condições de saúde?

MJL – Verificou-se um progresso muito assinalável no diagnóstico, seguimento e tratamento de doentes com hipertensão pulmonar na última década. Esse progresso traduziu-se numa melhoria da qualidade e tempo de vida dos doentes afectados por esta doença, com resultados equiparáveis aos principais países europeus. Não obstante os sucessos alcançados, subsistem desigualdades sobretudo no domínio do acesso. Os cuidados de saúde diferenciados para esta patologia concentram-se em quatro centros  urbanos do litoral do país e as iniquidades no acesso são semelhantes às encontradas para outras áreas de especialização na saúde. Estas assimetrias poderiam ser ultrapassadas melhorando a rede de referenciação hospitalar para a patologia e aumentando a oferta de apoio social aos doentes. Por outro lado, persistem também assimetrias no que diz respeito ao acesso a tratamentos inovadores para o tratamento da hipertensão arterial pulmonar entre os quatro centros de referenciação e que podem ter impacto no prognóstico destes doentes.

SO – Persistem, ainda assim, problemas no acesso à inovação e a cuidados diferenciados?

MJL – Virtude do ajustamento económico que o país sofreu nos últimos anos, persistem vários constrangimentos no acesso a medicamentos inovadores e cuidados diferenciados. Este problema é sentido de forma particularmente marcada na hipertensão pulmonar tendo em conta que o tratamento para esta patologia é dispensado  em exclusivo nas farmácias hospitalares destes quatro hospitais. Um doente que necessite de um tratamento específico para a hipertensão pulmonar não pode adquiri-lo na farmácia da sua área de residência e está dependente da autorização da farmácia hospitalar e do conselho de administração desse hospital para poder ser tratado.

SO – Uma nota final…

MJL – Os principais desafios da hipertensão pulmonar em Portugal são a referenciação atempada para um dos quatro centros de referência e o acesso à terapêutica comprovadamente eficaz. Cabe às equipas envolvidas na avaliação e seguimento destes doentes, assim como às associações de doentes e às entidades reguladoras, garantir a divulgação da doença para o seu diagnóstico precoce, a operacionalidade dos centros de referência para a correcta orientação dos doentes e o acesso à terapêutica modificadora de prognóstico.

SO

 

 

 

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