Mário Dinis Ribeiro >> “É necessário medir a qualidade, valorizar e remunerar adequadamente o que se faz”

A Gastrenterologia Portuguesa está de parabéns. A Sociedade Europeia de Endoscopia Digestiva ESGE elegeu o Professor Mário Dinis Ribeiro, Diretor do Serviço de Gastrenterologia do IPO-Porto como seu Presidente para o biénio 2016-2018

É a primeira vez que um português assume esta função, naquela que é uma das mais importantes sociedades médicas de especialidade da Europa. Em Entrevista ao SaúdeOnline, o Presidente-eleito da ESGE, fala das novas funções e do muito que a endoscopia digestiva portuguesa evoluiu nos últimos anos, somando prestígio internacional.

A eleição do também Professor Catedrático Convidado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto para a presidência da ESGE, resulta de um trabalho continuado que tem vindo a ser desenvolvido no seio da Sociedade Portuguesa de Endoscopia Digestiva (SPED), de aproximação à ESGE. Em 2008, Mário Dinis Ribeiro integraria, os órgãos diretivos da sociedade Europeia como vogal, em representação da SPED. Mais tarde viria a ser Coordenador da Comissão de Educação (2010-2014) e Secretário-Geral da Organização, cargos que desempenhou entre 2014 e 2016. “Foi na sequência desta “aproximação”, em estreita coordenação e apoio da SPED que me candidatei em 2016 à presidência da ESGE, tendo sido eleito para o cargo”, revelou ao nosso jornal. “A gastroenterologia portuguesa tem vindo a posicionar-se nos lugares cimeiros a vários níveis”, começa por salientar Mário Dinis Ribeiro, que recorda que a nível da sociedade europeia de gastrenterologia Portugal tem ocupado alguns lugares de destaque. “A gastroenterologia portuguesa e de uma forma particular a endoscopia digestiva estão vivas, muito ativas e não ficam aquém de qualquer das suas congéneres europeias”, sublinha.

Avanços na área da endoscopia digestiva

Os avanços que se têm registado nos últimos anos, vieram de certa forma transformar a especialidade ao mesmo tempo que permitiram alterar a história de muitas das patologias que trata. “Têm-se vindo a cumprir os três desejos sistemáticos da endoscopia: ver o tubo digestivo no seu todo, ver cada vez melhor, substituindo-se nesta vertente a disciplinas como a Patologia; reconhecer através do que se vê as doenças do tubo digestivo e ultrapassar mesmo os limites deste”, aponta o especialista.

“Na primeira das três dimensões temos avanços que não são de hoje, mas da última década ou mesmo anteriores, como a cápsula endoscópica ou videocápsula, uma tecnologia verdadeiramente disruptiva que permite visualizar seções do intestino delgado dificilmente acessíveis pelos métodos endoscópicos convencionais. Temos também registado avanços tecnológicos muito significativos a nível dos endoscópios, com capacidade de ampliação de imagem, modificação das cores e alta resolução da imagem que nos últimos dez anos tem permitido ampliar a capacidade de diagnóstico precoce de muitas condições e até a própria redefinição de algumas doenças obviando o recurso à biópsia. Finalmente, temos hoje aquilo a que podemos designar de endoscopia terapêutica para a qual convergem técnicas como a ecoendoscopia, a dissecção endoscópica da submucosa e a exérese de tumores da parede intestinal e mesmo ultrapassar a parede digestiva, no que sumariamente poderíamos designar de “endoscopia do terceiro espaço”. São estas as três dimensões de avanço que refletem os desejos da endoscopia, enquanto especialidade. A primeira vem dar muito espaço à relação da Gastrenterologia e da Endoscopia com a cidadania e com a automatização das análises e do diagnóstico. Se os preços foram comportáveis, caminhamos para diagnósticos pré-endoscópicos, o que é algo disruptivo”, salienta Dinis Ribeiro. A segunda vem aumentar enormemente a capacidade de identificar as lesões, delimitando-as e a terceira, substitui-se às técnicas cirúrgicas, chamemos-lhes assim “convencionais””, explica.

Grandes avanços tecnológicos que acompanham as grandes preocupações da especialidade, onde assumem particular relevância as relacionadas com o cancro e com as doenças crónicas. “Especificamente em relação à gastroenterologia, a possibilidade de diagnosticar precocemente uma neoplasia, de a tratar de forma minimamente invasiva e de apoiar as pessoas que necessitam de apoio paliativo”, são as nossas grandes preocupações em termos de cuidados. A que se juntam outras doenças igualmente importantes com grande impacto na qualidade de vida dos doentes como a doença inflamatória do intestino e doença hepática, a endoscopia intervém no diagnóstico e na vigilância”, afirma Mário Dinis Ribeiro.

Qualidade da endoscopia digestiva e valorização

Para o Diretor de Serviço do IPO do Porto, outro grande desafio da especialidade passa pela “medição da qualidade do que se faz” que constitui, diz, “uma preocupação a nível global, em todos os níveis”, que ainda está longe da concretização plena”. E que se reflete, também, na atividade da ESGE cujas comissões têm elaborado standards e evidência que permitem aferir a qualidade dos procedimentos”. Isto é algo que tem vindo a ser feito há já alguns anos noutros países e que em Portugal precisa ainda de dar passos mais decididos”, defende.

Outro grande desafio resulta de uma constatação: a principal reunião da gastrenterologia europeia ocorre, habitualmente, em Outubro e 50% dos participantes dizem que vão ao congresso por causa da endoscopia. O que reflete o grande interesse da classe pela endoscopia. “Mas é preciso, também”, defende Mário Dinis Ribeiro, “que o público e as entidades reguladoras, nacionais e europeias conheçam o potencial da endoscopia; o que somos capazes de fazer”, que no fundo se traduz “que problemas somos capazes de resolver”, defende. Para o especialista, a complexidade dos procedimentos atualmente realizados deve também ser valorizada em termos económicos: “estamos a falar de procedimentos minimamente invasivos, que permitem um diagnóstico precoce do cancro ou de lesões percursoras de cancro, e que se substituem, em muitas situações à cirurgia, mas que não têm sido devidamente valorizados. A endoscopia tem sido tratada como “um parente pobre, algo que tem de mudar rapidamente”, defende.

Outra das preocupações manifestadas pelo presidente eleito da ESGE é a das assimetrias regionais de especialistas que se registam a nível nacional. “A capacidade de resposta é muito diversa em termos regionais. Temos hospitais como o IPO do Porto que para além da vertente da prestação, acumulam o ensino da especialidade e a investigação que têm um número muito reduzido de especialistas. Segundo o presidente da ESGE, estas assimetrias levaram mesmo vários especialistas a sugerir à tutela que no desenho da nova rede nacional de referenciação, a tipologia proposta para os hospitais públicos tivesse em conta as diferentes vertentes de atuação da gastrenterologia.

Dinis Ribeiro aponta exemplos: “só na região do Porto, existem 2 ou três hospitais centrais com entre 10 e 20 especialistas o que mesmo em termos assistenciais é “muito curto” e conduz, inevitavelmente à formação de listas de espera e outros hospitais com apenas cinco, ou menos gastrenterologistas, o que é manifestamente insuficiente para abarcar as três vertentes de atuação referidas. Tem que haver uma aposta maior na especialidade”. Até pela realidade epidemiológica, salienta. “As duas principais causas de morte em Portugal são as doenças cardiovasculares e o cancro e neste grupo, o cancro digestivo. Também no que respeita à carga de doença, uma das principais causas de hospitalização é a bílio-pancreática, que não sendo exclusiva da gastrenterologia, obriga a uma convergência com a cirurgia… E o cancro gástrico”. Ou seja, aponta, “quer em termos de “peso” orçamental, quer no que toca ao impacto na qualidade de vida da população, existem indicadores que mostram que a doença digestiva é uma das com maior incidência. Já todos nós alguma vez na vida tivemos queixas digestivas”, afirma.

Mário Dinis Ribeiro defende ainda a valorização dos atos praticados, que a evolução dos meios tecnológicos permite realizar, desde a deteção/diagnóstico da doença, ao tratamento, como por exemplo o de retirar uma lesão neoplásica por via endoscópica, em alternativa à cirurgia. “Não podemos por um lado andar a par – e em alguns casos mesmo à frente – dos nossos pares europeus em termos da especialização dos serviço e muito atrás deles em termos de valorização dos mesmos. “A valoração dos atos é, em Portugal, claramente inferior à que se verifica no resto da Europa”, aponta, para logo acrescentar “não conheço nenhum país europeu com serviços públicos nesta área com recursos humanos tão escassos e onde os atos sejam tão mal valorizados em termos financeiros”, salienta o especialista.

Rastreios: quando e como devem ser feitos   

Recorrente no debate público, a questão dos rastreios em gastrenterologia tem suscitado posições antagónicas por parte dos especialistas. Para Mário Dinis Ribeiro, a questão “Quando fazer?” merece uma resposta pronta: “Sempre!”. Para o presidente da ESGE, a questão mais importante para a qual é necessário encontrar respostas é a da necessidade de abordar cada doente como “único”, ou melhor, cada “não doente” com um único ser, avaliando o risco individual. Atualmente, o único rastreio recomendado, relativamente ao tubo digestivo, incluindo o pâncreas e o fígado, é o do cancro colorectal, a partir dos cinquenta anos de idade, com ou sem histórico familiar. Para todos os outros órgãos, existem sugestões que têm em conta os fatores individuais de risco da pessoa, por exemplo, história pessoal de outros tumores, ou história familiar de doenças afetando aqueles órgãos e/ou doenças crónicas, como doença hepática crónica, ou doenças genéticas. Ou seja, ou há um risco claramente conhecido da pessoa, porque já teve aquela doença porque herdou um gene, ou porque tem/teve familiares com aquela doença, como o cancro gástrico, do pâncreas, ou há vontade individual de prevenir, em que a pessoa decide adotar estilos de vida saudáveis, praticar exercício físico, evitar o sal, deixar de tabaco, entre outros. Sabermos que o risco de alguém, no mundo Ocidental vir a desenvolver cancro colorectal ao longo da vida é de cerca de 5%, o que justifica a implementação de um programa de rastreio generalizado. E aqui, o que temos que fazer, é seguir as indicações da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que estes rastreios devem ser organizados, centralizados, e que devem ser auditados. Na verdade trata-se de uma decisão fundamentalmente política, de custo-benefício; eventualmente dinâmica, porque pode decidir-se uma coisa numa década e 2 ou 3 décadas depois alterar o modelo. Uma coisa, não muda, sublinha o professor universitário: “o que quer que seja feito só vai ter impacto, decorridos 10 ou 20 anos, se estiverem reunidas as três premissas referidas: organização, capacidade de auditoria e em consequência destas, qualificação.

Para o rastreio do cancro do colon e reto, Mário Dinis Ribeiro afirma que não existem dúvidas de que a coloscopia ocupa um lugar central, desde de que de com qualidade, que o mesmo é dizer, aponta, “feita após pré-teste, aumentando assim a probabilidade de encontrar lesões, ou a colonoscopia por si só, sem nenhum teste prévio, tendo como único referencial mais de cinquenta anos de idade”.

O sangue oculto nas fezes é um dos pré-testes adotados a nível europeu, aponta o especialista que ressalva: “não é por ser adotado a nível europeu que é bom, mas isso sim, porque está demonstrado que qualquer que seja o programa, a adesão é um fator crítico, a par com a qualidade dos procedimentos e com a verificação dos resultados a longo tempo”. Ora, aponta, “que eu saiba, não há nenhum estudo em Portugal que demonstre a relação de custo-benefício de diferentes estratégias”. O que sabemos, aponta, “de outros estudos, é que pode ser mais custo-eficaz fazer coloscopia de 10 em 10 anos, mas como referi, não existe nenhum estudo que o comprove em Portugal. E aqui, entramos na dicotomia acreditar/demonstrar. Eu preferiria que estivesse demonstrado”, reconhece.

De ponto de vista individual, está claro que a maior parte das pessoas adere a colonoscopia, quando lhes são apresentados os riscos e os benefícios dos dois cenários. A questão está, em que, vamos continuar a ter dificuldades em satisfazer as necessidades – ou a procura, se preferir – enquanto não se valorizarem devidamente estes exames; enquanto forem pagos com um valor pouco mais do que simbólico. “O que nós sabemos de outros países é que a adesão à colonoscopia de rastreio, ou seja, a que é realizada em indivíduos assintomáticos, é baixa, atingindo entre 10 e 15% da população elegível.” “Em Portugal, o que tem vindo a ser normalizado é um rastreio baseado na pesquisa de sangue oculto nas fezes”, aponta ressalvando: “se daqui a 5 ou 10, se verificar que as opções estão menos corretas há a possibilidade mudar, porque estão garantidos os pressupostos de organização, estandardização de procedimentos, designadamente a colonoscopia e a sua valorização e medição de qualidade”. “Em suma, torna-se um imperativo implementar um programa de rastreio de CCR, único e organizado, auditável e de qualidade “. “Só assim, poderemos adaptar e planear às novas realidades populacionais, tecnológicas e de cuidados de saúde”

 

MMM

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