Quo vadis? II
Médico de Família

Quo vadis? II

“(…) mas alguns são mais iguais que outros”
G. Orwell

Em pretérita crónica, ao opinar sobre o desempenho da atual equipe do ministério da saúde, abordámos o risco da interferência antitecnocrática na condução da política, nomeadamente na política de saúde. O segundo perigo tem a ver com a repetição do modus operandi do passado: contraste nítido entre as intenções de investir nos cuidados de saúde primários (CSP) e a prática de relegá-los para segundo plano.

Seria injusto esquecer que sem a iniciativa política de Correia de Campos é pouco crível que tivesse havido reforma do CSP. Porém, daí em diante não se pode dizer que os seguintes ministros tenham demonstrado por atos (já nas palavras são sempre generosos) grande entusiasmo pela reforma dos CSP. Esta tem prosseguido mais por dinâmica endógena que por impulsos da tutela. A importância dos CSP continua a não ser reconhecida e a mentalidade hospitalocêntrica permanece firmemente enraizada no imaginário lusitano. Apesar de algum progresso, o médico de família (MF) continua ainda a ser visto, em certa medida, como um simpático e simplório profissional que passa uns atestados, umas receitas de medicamentos, já adquiridos na farmácia por moto próprio ou indicação duma pessoa conhecida, ou ainda dumas credências para uns “exames” que o vizinho do lado aconselhou.

Para além destes equívocos, pouco entusiasmantes embutidos, na cultura popular, temos o lóbi das administrações hospitalares (AH) para quem o papel dos CSP se resume, mais coisa, menos coisa, a:

1) Fornecer mão-de-obra para os serviços de urgência, com os custos a serem suportados pelos CSP (naturalmente!);

2) Assumirem os custos com ECD e com prescrição, gerados nos cuidados de saúde secundários e;

3) arcarem com as culpas quando sazonalmente claudicam os SU por maior afluxo. Se é verdade que a primeira “missão” já faz parte do passado, quanto mais não fosse porque o contingente de MF encolheu dramaticamente, já quanto à segunda assiste-se a um recrudescimento da política de predação, com o aparente beneplácito da própria ARSLVT. Sobre esta aberração já tudo está dito sem que as AH defensores desta “colaboração” tenham sido capazes de contraditório minimamente convincente.

Mas é a terceira que merece algum enfoque. Declarações recentes atribuem aos CSP “falta de capacidade resolutiva dos cuidados primários” para justificar a exagerada afluência de condições banais aos SU hospitalares. Mas será que há dados objetivos que confirmem inequivocamente essa “falta de resolubilidade”? Onde temos estudos sérios que avaliem processos e/ou outcomes dos doentes assistidos em CSP e nos SU hospitalares? Não estaremos antes perante uma mera percepção de incapacidade? Dito doutro modo: essa falta de capacidade pode não ser (e não é) real, mas percebida (erroneamente percebida) pelos utilizadores dos cuidados de saúde. O veredicto que condena os CSP baseia-se, no fundo, na vox populi. Ora, o povo também se engana. Bastará evocar alguns mitos bem populares no domínio da saúde para demonstrá-lo. Por exemplo, quando se coloca a hipótese de referenciar um doente à neurocirurgia, emerge a fábula “da operação à coluna que deixa as pessoas em cadeira de rodas”. É a voz do povo, perfeitamente estulta neste caso. Também o recurso de tantos e tantos cidadãos à homeopatia, medicina quântica e quejandos não é prova da sua eficácia, ou da falência da “medicina alopática”. Quero com isto dizer claramente que a acusação de falta de capacidade resolutiva dos CSP se baseia simplesmente noutra fábula: “no centro de saúde ninguém atende as urgências”. Aliás, conviria recordar a obra “Saúde e doença em Portugal” da autoria de Manuel Villaverde Cabral, publicada em 2002, onde se afirma que as opiniões maioritariamente mais negativas sobre o SNS se encontravam entre os não utilizadores. Não havendo cuidado na recolha de informação sobre as “capacidades resolutivas” dos CSP, baseadas justamente nas declarações (vagas) daqueles que não os procuram, incorre-se num viés deplorável.

Mas mesmo pondo em causa as premissas que desvalorizam os CSP mantém-se uma questão pertinente e objetiva: Porque estão os SU inundados por casos que não justificam assistência diferenciada? Se se recusa a acusação de falta de “resolubilidade” como explicar o afluxo desmesurado?

A resposta será sociológica: os portugueses adoram o caos e odeiam a ordem. Nesse sentido o “banco” é o ideal: é só chegar e inscrever-se sem obediência a horários nem necessidade de marcações prévias. Aliás, os médicos são cúmplices do abandalhamento dos SU. Quando o protocolo de Manchester foi instituído, houve necessidade de juntar uma sexta cor às cinco originais: a branca, para classificar os doentes que se dirigiam ao SU por indicação prévia do médico de serviço. A ser verdadeira a informação então divulgada, e se a memória me não falha, no hospital da minha cidade 20% (!) das inscrições para o SU correspondiam a este critério heterodoxo. Admito que hoje seja diferente, mas a banalização do recurso indiscriminado ao banco foi fomentada no passado.

Por outro lado a sofisticação tecnológica própria da instituição hospitalar cria a diáfana ilusão da sua imprescindibilidade para o diagnóstico e tratamento de toda e qualquer maleita por mais banal que seja.

Por obra destes (e doutros) ingredientes, o banco de urgência degenerou numa verdadeira feira, onde se cruzam situações emergentes, banalidades e condições crónicas. Construiu-se uma tradição do SU hospitalar como o epicentro macrocéfalo do SNS. Para a desconstruir vai ser preciso tempo, engenho e vontade.

É importante reconhecer que o tipo de apreciações negativas e superficiais sobre a prestação dos CSP não têm grande pendor pedagógico. São contraproducentes, porque alimentam mais desconfiança nos CSP e consequente desvio de mais doentes para os SU hospitalares.

 

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