2 Mar, 2017

Daniel Pereira da Silva: Especialização dos serviços não é compatível com serviços “à porta de casa” de todas as portuguesas

Em entrevista ao nosso jornal, Daniel Pereira da Silva, aborda os principais desafios que a Ginecologia/obstetrícia hoje enfrenta, entre os quais, a “fuga” de muitos especialistas para o setor privado e a necessidade de criação de centros de referência, incompatíveis com serviços “à porta de casa” de todas as portuguesas

Nascida da associação entre as Sociedades Portuguesa de Obstetrícia e Ginecologia (SPOG), Sociedade Portuguesa de Ginecologia (SPG), Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução (SPMR), Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal (SPOMMM) e da Sociedade Portuguesa de Menopausa (SPM), com um objetivo de conquistar uma representação nacional integrada e concertada junto de organismos e entidades nacionais e internacionais, a “Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e de Ginecologia” (FSPOG), é hoje uma das mais prestigiadas organizações de especialidade médicas nacionais. Em entrevista ao nosso jornal, Daniel Pereira da Silva, aborda os principais desafios que a Ginecologia/obstetrícia hoje enfrenta, entre os quais, a “fuga” de muitos especialistas para o setor privado e a necessidade de criação de centros de referência, incompatíveis com serviços “à porta de casa” de todas as portuguesas
A federação portuguesa das sociedades de ginecologia e obstetrícia (FPSGO) é única no modelo de organização. Não existe em Portugal, tanto quanto pude pesquisar qualquer outra federação de sociedades médicas. Como se justifica?

A criação da FSPOG nasceu do reconhecimento, por parte das direções das diversas sociedades existentes em diferentes áreas de interesse da Obstetrícia e Ginecologia, da necessidade de manter um elo de unidade na promoção e defesa da saúde da mulher em vertentes médicas específicas e da existência de uma estrutura de coordenação superior das atividades e ações das sociedades afiliadas. Esta necessidade radica no facto de as diferentes áreas que integram a especialidade se terem agregado em sociedades distintas, focadas em vertentes específicas da especialidade. A criação de sociedades científicas teve início em 75, e resultou do enorme desenvolvimento que se estava a operar em todo o mundo tanto na área da Obstetrícia como na da ginecologia, individualmente. Foi nesse contexto que foram criadas as sociedades Portuguesa de Ginecologia e a Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, o que de algum modo veio delimitar as duas áreas de especialidade que até aí se encontravam agregadas numa só sociedade, a Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Ginecologia (SPOG), fundada em 1954, uma das sociedades médicas de especialidade portuguesas mais antigas.
Pese a cisão registada, a SPOG manteve-se, embora tenha centrado a sua atividade na área da Obstetrícia. Esta “separação” terminaria em 2005, ano em que as Direções da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Ginecologia (SPOG), da Sociedade Portuguesa de Ginecologia (SPG), da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução (SPMR) e da Sociedade Portuguesa de Menopausa (SPM), reconheceram as vantagens de uma representação nacional integrada e concertada junto de organismos e entidades nacionais e internacionais, que permitiu alterar os estatutos da SPOG, transformando-a na “Federação das Sociedades da Área da Medicina da Mulher e do Feto” designação que seria alterada em 2007 para “Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e de Ginecologia” (FSPOG). A estas sociedades juntar-se-ia, como membro fundador da FSPOG, a Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal (SPOMMM), entretanto constituída. Culminado o processo, a SPOG seria extinta em Janeiro de 2008. Em 2010 a Sociedade Portuguesa da Contraceção foi criada e passou a integrar a FSPOG.

Quais as vantagens do modelo?

É um modelo em que nos articulamos muito melhor e que nos permite uma representatividade internacional muito mais muito mais expressiva. As diferentes vertentes que integram as especialidade trilham hoje um caminho comum, harmonioso, de comunhão de interesses e em que todos se sentem representados na FSPOG.

Quais são, hoje, os grandes desafios da Especialidade, no seu todo?

Ao nível assistencial, por força das dificuldades que o país atravessou e ainda atravessa, com impactos muito negativos no investimento, assistimos ao despontar de problemas muito delicados, que só têm sido ultrapassados graças ao profissionalismo dos médicos, que tem permitido colmatar muitas lacunas. Ao desinvestimento provocado pela crise que o país atravessa, junta-se um outro fenómeno, com particular impacto nos últimos 10 anos, que foi o do crescimento exponencial do setor privado da Saúde, que conduziu à saída de muitos profissionais do Serviço Nacional de Saúde, agravando as dificuldades.
Em suma, neste momento temos, indiscutivelmente, grandes dificuldades quer ao nível dos recursos humanos, quer dos equipamentos.

Uma sangria que também se registou ao nível da população abrangida, com muita gente a optar pelos privados… Esta “transferência” não funcionou como “paliativo” à saída de profissionais?

O trabalho não diminuiu – se é isso que sugere com a sua pergunta. Pelo contrário, tem vindo a aumentar. E muito. O número, variedade e exigência dos atos praticados, até pela evolução constante que se tem operado nesta área, tem aumentado significativamente.

Quais são, na atualidade, os principais problemas que têm de enfrentar na vossa área específica da saúde da mulher?

Nos últimos 30 anos, a Ginecologia/Obstetrícia fez um trajeto a todos os títulos notável. Com resultados visíveis de entre os quais se destacam os indicadores neonatais, com a mortalidade a reduzir-se a níveis que posicionam Portugal no ranking dos países com melhores resultados a nível mundial. É evidente que estes progressos tiveram impacto em muitas outras áreas, mesmo na oncológica. Mas ainda temos muitas lacunas. Não fomos, por exemplo, capazes de construir um modelo de rastreio nacional de prevenção do cancro do colo do útero. Temos vários modelos instituídos a nível regional, criando assimetrias que não deveriam, de todo, verificar-se e que não se entendem num país com a dimensão de Portugal. Ainda assim, alcançaram-se resultados positivos. Por exemplo, registámos uma redução significativa na incidência do cancro do colo do útero. Já relativamente à taxa de sobrevivência, os resultados não foram tão expressivos. E não melhorámos neste indicador devido a deficiências ao nível da rede de cuidados, muito marcada por assimetrias regionais da acessibilidade a cuidados mais diferenciados, para centros de referência, com experiência acumulada.

A rede de referenciação não funciona?

De fact, não está existe. Falou-se muito na sua implementação, mas a realidade mostra que ainda não está implementada em todo o país.

Qual o papel das sociedades científicas na melhoria dos indicadores?

Tem sido importante. A Sociedade Portuguesa de Ginecologia publicou recentemente um estudo sobre a evolução das Histerectomia que mostra que nos últimos 15 anos, o número de histerectomias em Portugal diminuiu 19,4%, o que reflete uma evolução no sentido de uma menor intervenção na patologia benigna e também uma evolução das próprias técnicas cirúrgicas, com aumento das minimamente invasivas.

Mas mantém-se outros problemas…. Veja-se os dados relativos ao número de cesarianas, em que Portugal surge “mal na fotografia”.

É verdade. Há um grande desequilíbrio entre marenidades, e entre os serviços públicos e privados, com o público a registar uma diminuição do número de cesarianas, procurando atingir números considerados razoáveis pelas organizações internacionais, como a Organização Mundial de Saúde, e em alguns Privados o oposto.

Qual a razão?

Desde logo, o viés que resulta da própria escolha da mulher, com muitas mulheres a optarem pela cesariana.
Há cerca de uma semana, visitei a um hospital público que conseguiu reduzir a taxa de cesarianas em cerca de 10 pontos percentuais- neste momento tem uma taxa de cerca de 28%, o que é bastante aceitável – mas onde se verifica uma verdadeira “fuga” de mulheres para o privado. Ou seja, a taxa de cesarianas baixou pela alteração de critérios médicos – por exemplo, deixaram de se realizar segundas cesarianas só por essa indicação – mas baixou também porque as mulheres passaram a recorrer aos privados, onde podem decidir de que modo desejam que o parto seja realizado, sendo no caso concreto, por cesariana.

Outra área pródiga em notícias é a da reprodução… Particularmente a medicamente assistida.

Sem dúvida. E é assim, porque é uma área na qual pontificam mais valores sociais e sócio/políticos do que critérios médico/científicos.
Alargou-se muito o espetro do direito à parentalidade, que hoje abrange não apenas os casais, mas também a mulher monoparental, que passaram assim a poder ter filhos com o apoio dos serviços públicos. É todo um novo paradigma que hoje vigora, que naturalmente coloca novos desafios à prática médica e à sociedade.
Não basta alargar os direitos, é fundamental criar condições para que os serviços públicos respondam – já temos listas de espera para casais, que irão aumentar se não melhorarmos a resposta. É fundamental que não se criem assimetrias na acessibilidade aos tratamentos – se a legislação mais recente permitir que os medicamentos sejam comparticipados a 100% pelo SNS, não faz sentido que essa condição não se estenda a todas as mulheres e casais.

A idade também deixou de ser uma barreira… Hoje é-se mãe cada vez mais tarde…

A demografia da sociedade portuguesa vai ser um dos temas principais do nosso 21.º congresso, que este ano decorrerá de 1 a 4 de junho, em Coimbra. Convidámos a Professora Maria Filomena Nunes, que tem realizado muito trabalho de investigação nesta área, para proferir a conferência de abertura, na qual nos irá, certamente, trazer novidades.
Já se sabe que em 2016, a par com o crescimento do número de nascimentos em Portugal, verificou-se pela primeira vez uma tendência – ainda que tenha que ser avaliada com cautela, dado tratar-se de dados de apenas um ano – de redução da idade média das mulheres primo-grávidas, o que é também um dado muito interessante.
Dito isto, não há como não reconhecer que, de facto, o aumento da idade em que as mulheres são mães é uma realidade, não apenas nacional, mas europeia. É preocupante, porque traz às maternidades não só mães com idades mais avançadas, mas mães com comorbilidades muito importantes. E é aqui que se nota, sobremaneira, a escassez de recursos. Fazemos menos partos, mas os que realizamos envolvem riscos acrescidos, obrigando a um acompanhamento muito regular das grávidas e a um trabalho acrescido nas salas de parto para todos os profissionais envolvidos.
Importa salientar que muito embora o risco destas gestações seja significativamente maior, também é verdade que a Obstetrícia, por força da experiência adquirida neste tipo de situações, consegue dar a resposta adequada.

A renovação geracional de profissionais é um problema na Obstetrícia/ginecologia?

Está garantida! A Ordem dos Médicos tem estudos sobre a demografia médica, que o Colégio de Obstetrícia e Ginecologia considera para a nossa especialidade, que mostram que não vamos ter problema no futuro; que a renovação geracional está garantida.
Mas deparamo-nos com uma dificuldade: a da formação. Um problema que tem na sua génese a saída para o setor privado de um número significativo de profissionais, necessários para garantir a formação dos futuros especialistas.
Por exemplo no hospital a que me referi atrás, o número de tarefeiros a prestar serviço era superior ao de médicos do quadro e nós sabemos que isso acontece em muitos hospitais. Ora, não me parece viável “entregar” um interno de especialidade a um tarefeiro. A manter-se este cenário, não há como garantir a qualidade e continuidade da formação… Este ambiente não é compatível com o “espírito do serviço” necessário à criação de protocolos, de harmonização de procedimentos e de avaliação que são indispensáveis à formação.
Ora, num hospital onde há 10 tarefeiros e 7 médicos do quadro, isso não é viável. É necessário inverter esta situação.

Uma queixa comum a muitas especialidades é a das diferenças regionais em termos de qualidade dos cuidados prestados. Que é diferente ser-se tratado no Porto ou em Bragança… É também um problema que afeta a Obstetrícia/ginecologia?

Em algumas áreas, assim é. Nós temos de evoluir para uma articulação de referenciação no SNS, com maior eficácia e transparência. As patologias que exigem maior diferenciação, por exemplo medicina da reprodução, diagnóstico pré-natal, patologias menos frequentes nas mulheres grávidas, oncologia, entre outras, deveriam ser orientadas de forma articulada entre as unidades de saúde. Nós temos linhas de orientação publicadas por sociedades científicas e Direção Geral da Saúde. São orientações que se encontram perfeitamente estabelecidas, adequadas, conformes com as guidelines internacionais. O problema é que certas patologias exigem diferenciação, que só se atinge com um número determinado e regular de casos. Muitas vezes são áreas multidisciplinares.
Veja-se o cancro a sua abordagem envolve a cirurgia, a radioterapia, a oncologia médica, a anatomia patológica, a imagiologia, entre outras. É no cômputo destas especialidades que nós podemos tomar decisões relativamente a um caso concreto. Ora, a verdade é que não temos disseminados de forma igual, pelo país, hospitais com todas estas valências, isso é impossível e desadequado.
No caso da patologia oncológica a cirurgia continua a ser a principal arma terapêutica, quando não se faz o máximo esforço cirúrgico comprometemos a vida da doente, e esse deficit não é anulado pela ação das outras armas terapêuticas. Ou seja, se o cirurgião não tem a experiência necessária, prejudica a doente. Essa experiência não se atinge, sem o número adequado de casos. Determinadas cirurgias e determinados atos médicos, não podem ser feitas em todos os hospitais; “à porta de casa”. A proximidade é muito importante, mas não é possível para muitas patologias. Com uma articulação realista, não centralizadora, mas que procure optimizar o potencial de cada unidade hospitalar é possível melhorar os nossos resultados em muitas patologias.

Foi lançada ontem (20 de fevereiro) uma plataforma através das quais as mulheres portuguesas vão passar a poder escolher em que hospitais querem ter os filhos. Como vê esta iniciativa?

Trata-se de uma medida que, se não estou em erro – estava inscrita no programa do atual Governo, relativamente a todas as situações e não apenas aos partos. Essa liberdade, na minha opinião é positiva. Não faz sentido obrigar que recorram a uma determinada maternidade. Mas entendo que as maternidades e todos os serviços de saúde têm de revelar os seus resultados. Os resultados devem ser transmitidos à sociedade, para que os cidadãos possam exercer o tão adiado direito à escolha informada.

Last, but not least… Vamos ter, em junho, a grande reunião da FSPOG, o que destaca do programa do 21.º Congresso?

É, de facto, o grande congresso da especialidade, para cujo programa científico concorreram todas as sociedades afiliadas na FSPOG. Como sempre, vamos ter temas da maior atualidade. Desde logo, a conferência inaugural, de que já falámos atrás, sobre demografia, um tema que nos preocupa, porque apesar de 2016 ter sido um ano positivo, a tendência a longo prazo não é, de todo, animadora. As novas técnicas e as tentativas de cirurgias estéticas vulvares, que muitas vezes não passam de logros, a questão dos partos gemelares, restrições do crescimento fetal, testes pré-natais, temas da área da fertilidade, oncofertlidade – entre outros temas da especialidade, têm lugar num programa onde se inscrevem ainda a abordagem das infeções genitais, patologia da mama, contraceção, contraceção de emergência, novas propostas terapêuticas para a menopausa, rastreios… Enfim, não faltará, certamente, por onde escolher.

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