Geocentrismo ou Heliocentrismo?
Bastonário da Ordem dos Médicos

Geocentrismo ou Heliocentrismo?

Não obstante já terem passado 400 anos, por vezes tenho dúvidas se já vivemos francamente na era Heliocêntrica ou se ainda nos mantemos na longa noite obscurantista da era Geocêntrica…

Num recente programa de televisão, o representante do Estado na Comissão de Acompanhamento das Terapêuticas Não Convencionais (TNCs), um médico, Dr Pedro Ribeiro da Silva, fez afirmações surpreendentes, atestando que as mesmas têm um tipo de cientificidade que não cabe ao Estado comprovar, mas simplesmente aceitar.

A Ordem dos Médicos enviou algumas questões ao Ministério da Saúde sobre estas afirmações, no mínimo, polémicas, mas o Ministério da Saúde não soube, não quis, ou não teve coragem para responder.

Simplesmente perguntámos que “outro tipo de cientificidade” têm as terapêuticas não convencionais e qual é esse “tipo de cientificidade”? Afinal, quantas “cientificidades” existem? Se “não nos compete a nós analisar a cientificidade dessas áreas”, compete a quem?

É impressionante que, em pleno século XXI, perante os vertiginosos avanços da ciência, um representante do Estado português defenda publicamente que há práticas e intervenções em Saúde que podem ser livremente praticadas sem qualquer fundamentação científica, independentemente dos seus resultados e dos seus riscos. Mas é assim que pensa e actua a Direcção Geral da Saúde de Portugal, violando sem remorso nem vergonha o enquadramento ético que define no seu próprio Portal: a DGS “desenvolve a sua missão de acordo com o … rigor Científico e Ético nas Decisões em Saúde – Decisões de Saúde tomadas com base nos melhores conhecimentos existentes em termos científicos e de aplicação do conhecimento, e livres de quaisquer interesses que não sejam o serviço público em Saúde”

Qualquer pessoa que invente uma ‘terapêutica’ pode aplicá-la e comercializá-la livremente em Portugal, com a sua ‘cientificidade própria’ que ‘não nos compete a nós avaliar’?! As ‘práticas de Vilar de Perdizes’ e os “defumadouros para afastar os espíritos”, ‘medicina’ tradicional portuguesa, também vão ser apadrinhadas pela DGS?

Deve o Estado laico português, estimular o regresso a práticas da medicina tradicional ocidental de há 500 ou 1000 anos e equipará-las às restantes profissões da saúde? Alguém deseja voltar ao tempo em que Medicina, Filosofia e Religião se confundiam?! Provavelmente quem pretendesse regredir 1000 anos na prática médica ocidental seria preso pelo Estado… Então qual a fundamentação para um comportamento distinto relativamente a práticas milenares apenas porque são de outros continentes e outras culturas e a respectiva medicina se atrasou no seu desenvolvimento intelectual, crítico e científico? Não foi sem fundadas razões que Fernando Pessoa disse que se tivesse de escolher uma palavra para definir a mentalidade portuguesa seria ‘provincianismo’…

Mas não é só uma questão de crenças e tradição, é sobretudo de seriedade, rigor e defesa da Saúde Pública.

Um estudo australiano demonstrou que 90% dos produtos de ‘Medicina’ Tradicional Chinesa (MTC) vendidos na Austrália estavam adulterados. Os Senhores Deputados e o Governo deveriam ter a obrigação ética, política e científica de evitar que, com enorme probabilidade e total descontrolo, estejam a ser vendidos em Portugal produtos da MTC em que 50% podem ter constituintes de plantas e animais não declarados, incluindo espécies em risco de extinção (leopardo das neves), 50% podem ter medicamentos na sua constituição, incluindo warfarina, cortisona, diclofenac, ciproheptadina e paracetamol, e ainda metais pesados, como arsénico, chumbo e cádmio. Mas nada acontece, apesar dos alertas…

É interessante que a MTC esteja em decadência no seu próprio país mas a tentar exportar-se, por motivos meramente comerciais, para países ‘mais desenvolvidos’ (a exportação de ‘ervas chinesas’ representa um negócio de muitas dezenas de milhares de milhões de euros anuais)! Na China há, actualmente, 600.000 praticantes de ‘medicina’ tradicional chinesa e 2.900.000 médicos chineses de medicina ocidental. Em poucos anos, os médicos chineses formados em medicina científica ocidental suplantaram em cinco vezes os praticantes das terapêuticas tradicionais chinesas, constituindo um inequívoco sinal das insuficiências, descrédito e declínio das práticas tradicionais.

A Ordem dos Médicos tem consciência que também entre os praticantes de TNC há uma grande heterogeneidade e que se encontram pessoas com boa formação, conhecimentos sólidos, espírito rigoroso e prática consciente, ansiosas pela construção de uma profissão dignificante fora dos poderosos interesses instalados, com as quais o diálogo deveria ser privilegiado. Estes, a Ordem dos Médicos defende que devem ser adequada e rapidamente regulamentados, para separar o trigo do joio. Para que não surjam dúvidas, não considero incluídas nas TNC práticas como o yoga, por exemplo, uma forma de exercício, controlo, meditação, relaxamento e cultura, cujos benefícios genéricos para a saúde, desta e de outras técnicas, estão amplamente comprovados.

É chocante que as TNC exijam globalmente a isenção do IVA e todos os direitos, mas não exijam as mesmas regras aplicadas à medicina convencional: comprovação científica de eficácia (acham que não é necessário…), formação exigente e idónea (não querem cumprir as regras da A3Es e, pelo contrário, ultrapassando a lei, querem legalizar todas as escolas já existentes, que não passaram por nenhum filtro de qualidade e que, no mínimo, são de idoneidade extraordinariamente duvidosa! A A3Es apenas aprovou cinco cursos de Osteopatia), controlo de qualidade dos seus produtos (nem ousam falar no assunto!), passagem do registo dos produtos utilizados da DGAV para o Infarmed (não defendem…), assinatura de Consentimento Informado, nem pensar…

Infeliz e (não) surpreendentemente, o enquadramento em que a OMS coloca as ‘Medicinas Tradicionais’ não tem em conta a diferente realidade dos continentes e dos países no que se refere aos sistemas de saúde. Mas não admira, pois a presidência da OMS é exercida por uma chinesa, única razão pela qual foi possível a aprovação destes documentos…

Ainda assim, a OMS não esquece completamente as questões da qualidade e segurança e, por isso mesmo, afirma que “Traditional Medicine, of proven quality, safety, and efficacy, contributes to the goal of ensuring that all people have access to care”. Naturalmente, todas as intervenções que demonstrem qualidade, segurança e eficácia pela metodologia científica são automaticamente incorporadas na Medicina Convencional, deixando de ser TNC. Por conseguinte, a OMS apenas suporta as práticas “of proven quality, safety, and efficacy”. Mais ainda, a OMS manifesta a sua preocupação com os riscos associados às TNC. Todavia, Portugal e a DGS ignoram estas recomendações da OMS; em Portugal entra tudo e de qualquer maneira. Dizem que é em nome de um conceito estranho, nesta matéria específica, que se pode qualificar como ‘liberdade de escolha não informada’ dos cidadãos…

Nestes ‘práticos de TNC’ encontram-se indivíduos que, inclusivamente, são contra as vacinas, um dos maiores avanços da humanidade, da ciência e da medicina, que salvou a vida e a saúde a milhares de milhões de pessoas! Mas a DGS não se importa, quiçá porque ser contra as vacinas também deverá ter a sua ‘cientificidade própria’…

Há um paradoxo que alguém devia explicar e que a Ordem dos Médicos confia que os Senhores Deputados e a DGS analisem e expliquem. À medicina convencional e científica exigem-se e impõem-se, e muito bem, todos os controlos, todas as regras, a máxima exigência todo o rigor técnico e científico. A criação do SINATS (Sistema Nacional de Avaliação de Tecnologias de Saúde) vem exactamente nesse sentido. Já quanto às TNC, os respectivos praticantes são tratados como os ‘coitadinhos’ que não precisam de provar nada, não necessitam de controlo nenhum, podem ter uma formação esotérica, filosófica e superficial e podem aplicar as técnicas que quiserem que ninguém se preocupa. A Ordem dos Médicos propôs formalmente a criação de um SINATS para as TNC; porém, para já, todos estão a assobiar para o ar….

Praticar medicina no século XXI como se praticava há dois mil anos, quando a tradição, a evidência e a religião não permitiam dúvidas quanto ao facto de ser ‘o sol a andar à volta da Terra’, é obscurantismo que irá ser completamente ultrapassado pelo conhecimento científico. É inevitável. O mesmo acontecerá com todas as TNC sem base científica.

Hoje já ninguém defende que a Terra é o centro do Universo, mas, até há 400 anos atrás, a tradição, a ignorância, a evidência visual e a religião impunham a teoria do Geocentrismo.

Na verdade, apesar da teoria Heliocêntrica ter sido provada há mais de 400 anos, ainda temos legisladores a viver nos tempos anteriores da teoria Geocêntrica, aprovando ‘medicinas alternativas baseadas em esoterismos, tradições e conhecimento errados’, implicando riscos para as pessoas, talvez ainda com receito de serem ‘queimados pela inquisição (…)’, tal como aconteceu com Galileu Galilei, considerado como o pai da ciência, que escapou por pouco a esse destino infernal.

Eppur si muove”.

Nota: Texto escrito de acordo com a grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990

 

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